A Antologia de Poesia Erótica e Satírica seleccionada, prefaciada e anotada por Natália Correia foi originalmente
publicada em 1965 pelas Edições Afrodite do então neófito editor Fernando
Ribeiro de Mello. Concebida na casa de Natália, frequentada por Ribeiro de
Mello em serões concorridos de boémia e má-língua, a Antologia terá sido um
projecto antigo do jornalista figueirense Miguel Cardoso Marta, amigo da
família de Natália e a quem esta comprou uma vasta biblioteca. Natália lançou
mão ao projecto, «exumando do cemitério das obras malditas poesias que
trouxessem à superfície (e à modorra dos anos finais de Salazar) as recalcadas
supurações do instinto». De Martim Soares, século XIII, a Dórdio Guimarães, com
quem Natália viria a casar mais tarde, são 550 páginas de poesia, muita dela
então inédita, na melhor tradição do escárnio e maldizer que está na raiz de
parte da nossa literatura. Foi este o primeiro de quatro livros de
Natália Correia editados pelas Edições Afrodite, prontamente retirado do mercado
pela censura, sujeito a apreensão e buscas pela PIDE nas casas do editor, da
organizadora e dos colaboradores, e com direito a processo judicial por
«ultraje à moral pública». Decretado o Auto de Inutilização pelo fogo, em que
foi oficiante o juiz corregedor João de Sá Alves Cortez, que chegaria ao
Supremo em 1984, as sentenças do julgamento no Tribunal Plenário Criminal de
Lisboa viriam a ser proferidas a 21 de Março de 1969 (no dia da poesia):
Natália Correia e Fernando Ribeiro de Mello são condenados a 90 dias de prisão
substituídos por multa; Mário Cesariny, Luiz Pacheco, Ary dos Santos e Melo e
Castro são condenados a 45 dias de prisão substituídos por multa. O único réu
cuja sentença foi convertida em pena de prisão efectiva foi Luiz Pacheco, então
residente nas Caldas da Rainha. Ary dos Santos e Ribeiro de Mello chegaram a
ser objecto de mandado de captura por não efectuarem o pagamento da multa de
forma atempada. Exemplo:
De Fernão da Silveira a Dom Rodrigo de Castro que beijou uma dama, e ela meteu-lhe a língua na boca
Pois
medistes assim crua
a sua língua com a vossa,
dizei-nos que é mais grossa,
se a vossa, se a sua.
Também
queremos saber
até onde foi metida,
e qual era a mais comprida
mais solta no remexer.
Se veio tal falcatrua
por sua parte ou por vossa,
nos dizei qual é mais grossa,
se a vossa, se a sua.
Resposta de Dom Rodrigo
Mais
comprida e mais delgada
achei a sua que a minha
porque toda a campainha
me deixou escalavrada.
E fez-se tão grande brigas
nos queixais,
que mos não fizera tais
um grande molho de urtigas.
Eu
disse-lhe: «Tem-te perra,
não metais assim de ponta
a língua, que tanto monta
como ós da boca em terra,
fazei de conta».
Dizia: «Mano deixai-me
Enquanto tenho lugar».
E eu bradava: «Soltai-me,
deixai-me resfolegar,
que me quereis afogar.»
De Fernão da Silveira a Dom Rodrigo de Castro que beijou uma dama, e ela meteu-lhe a língua na boca
a sua língua com a vossa,
dizei-nos que é mais grossa,
se a vossa, se a sua.
até onde foi metida,
e qual era a mais comprida
mais solta no remexer.
Se veio tal falcatrua
por sua parte ou por vossa,
nos dizei qual é mais grossa,
se a vossa, se a sua.
achei a sua que a minha
porque toda a campainha
me deixou escalavrada.
E fez-se tão grande brigas
nos queixais,
que mos não fizera tais
um grande molho de urtigas.
não metais assim de ponta
a língua, que tanto monta
como ós da boca em terra,
fazei de conta».
Dizia: «Mano deixai-me
Enquanto tenho lugar».
E eu bradava: «Soltai-me,
deixai-me resfolegar,
que me quereis afogar.»
Fernão da Silveira, século XV
Sem comentários:
Enviar um comentário