terça-feira, 12 de dezembro de 2023

ANTOLOGIA DE POESIA PORTUGUESA ERÓTICA E SATÍRICA

 


A Antologia de Poesia Erótica e Satírica seleccionada, prefaciada e anotada por Natália Correia foi originalmente publicada em 1965 pelas Edições Afrodite do então neófito editor Fernando Ribeiro de Mello. Concebida na casa de Natália, frequentada por Ribeiro de Mello em serões concorridos de boémia e má-língua, a Antologia terá sido um projecto antigo do jornalista figueirense Miguel Cardoso Marta, amigo da família de Natália e a quem esta comprou uma vasta biblioteca. Natália lançou mão ao projecto, «exumando do cemitério das obras malditas poesias que trouxessem à superfície (e à modorra dos anos finais de Salazar) as recalcadas supurações do instinto». De Martim Soares, século XIII, a Dórdio Guimarães, com quem Natália viria a casar mais tarde, são 550 páginas de poesia, muita dela então inédita, na melhor tradição do escárnio e maldizer que está na raiz de parte da nossa literatura. Foi este o primeiro de quatro livros de Natália Correia editados pelas Edições Afrodite, prontamente retirado do mercado pela censura, sujeito a apreensão e buscas pela PIDE nas casas do editor, da organizadora e dos colaboradores, e com direito a processo judicial por «ultraje à moral pública». Decretado o Auto de Inutilização pelo fogo, em que foi oficiante o juiz corregedor João de Sá Alves Cortez, que chegaria ao Supremo em 1984, as sentenças do julgamento no Tribunal Plenário Criminal de Lisboa viriam a ser proferidas a 21 de Março de 1969 (no dia da poesia): Natália Correia e Fernando Ribeiro de Mello são condenados a 90 dias de prisão substituídos por multa; Mário Cesariny, Luiz Pacheco, Ary dos Santos e Melo e Castro são condenados a 45 dias de prisão substituídos por multa. O único réu cuja sentença foi convertida em pena de prisão efectiva foi Luiz Pacheco, então residente nas Caldas da Rainha. Ary dos Santos e Ribeiro de Mello chegaram a ser objecto de mandado de captura por não efectuarem o pagamento da multa de forma atempada. Exemplo:
   
De Fernão da Silveira a Dom Rodrigo de Castro que beijou uma dama, e ela meteu-lhe a língua na boca
 
Pois medistes assim crua
a sua língua com a vossa,
dizei-nos que é mais grossa,
se a vossa, se a sua.
 
Também queremos saber
até onde foi metida,
e qual era a mais comprida
mais solta no remexer.
Se veio tal falcatrua
por sua parte ou por vossa,
nos dizei qual é mais grossa,
se a vossa, se a sua.
 
Resposta de Dom Rodrigo
 
Mais comprida e mais delgada
achei a sua que a minha
porque toda a campainha
me deixou escalavrada.
E fez-se tão grande brigas
nos queixais,
que mos não fizera tais
um grande molho de urtigas.
 
Eu disse-lhe: «Tem-te perra,
não metais assim de ponta
a língua, que tanto monta
como ós da boca em terra,
fazei de conta».
Dizia: «Mano deixai-me
Enquanto tenho lugar».
E eu bradava: «Soltai-me,
deixai-me resfolegar,
que me quereis afogar.»

Fernão da Silveira, século XV

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