Um divertimento. Podíamos ficar por aqui e ninguém levaria a mal, mas
não seria justo. “O Quartel ou As Bochechas do General” (Edições
Tinta-da-china, Agosto de 2023), romance de A. M. Pires Cabral (1941), transcende, pela inteligência do humor e pela mestria no tratamento das
palavras, qualquer um desses rótulos que diminuem as obras ao pretenderem classificá-las.
Este divertimento, só para dar um exemplo, arranca logo com um pequeno ensaio
sobre a arte de contar uma história e, especialmente, sobre essa distinção entre
real e imaginado que é sempre útil ter em conta no domínio da ficção. Não
resisto a citar dois parágrafos, pelo que trazem de revelador num Autor que
estamos habituados a ver associado a uma estrita relação com o real:
«Quem tem medo da imaginação? Do real é
que há que ter medo. É o real que tiraniza o nosso dia-a-dia. Com ele e com os
seus caprichos é que temos de nos haver. O real é a doença, o stress, a
pobreza, a inflação, o desemprego. O real é a guerra, o atropelo dos direitos
do homem, os fundamentalismos, radicalismos e extremismos. O real são os danos
que infligimos ao planeta e as alterações climáticas, as secas, inundações e
demais catástrofes com que o planeta retalia. Obviamente todos esses males
podem existir no mundo da imaginação — mas aí são males faz-de-conta que não
nos afectam realmente.
Há quem veja a imaginação como recusa do real. Outros
vêem-na como alternativa ao real. Outros ainda como um sucedâneo do real, ou
seja, uma realidade de segunda escolha. Eu prefiro vê-la como uma
sobrerrealidade, que corrige e enriquece a realidade real. Prefiro vê-la na sua
função utilitária de exorcismo contra os malefícios do real. Farto do real até
à raiz dos cabelos, tenho sempre à mão, disponível, o refrigério e o consolo de
que só a imaginação tem o segredo» (p. 11).
Estamos perante um produto da imaginação, uma imaginação aqui postulada
em dois tipos: a verosímil e a inverosímil. A primeira “aninha-se no real”, a
segunda, também chamada de alfa, subverte-o. É a de Huxley e de Orwell, é a
deste romance de A. M. Pires Cabral. Não se julgue, porém, tratar-se este
quartel de uma distopia com carácter profético. É mais uma fantasia, se assim podemos
dizer, ou até uma alegoria. Mas alegoria de quê? Bem, o campo da acção é um
quartel, um quartel que não existe, o do Regimento de Apontadores 7, microcosmo
de interacções determinadas hierarquicamente por um Regulamento. Portanto, o
que aqui está em causa é a estrutura militar, ou seja, essa coisa de haver quem
manda e quem está obrigado a obedecer, princípio relacional dado a inúmeros equívocos e outras tantas problemáticas e dúvidas sobre a razão de ser das disposições que se sobrepõem à
vontade dos indivíduos.
O confronto nuclear nesta história surge representado nas figuras do mancebo Benjamim da Silva Boavida, «um pobre soldado em prova de sentinela», e do sargento Cipriano Arrobas, alcunha Arromba: «Sim, eu sei que há quem goste disso: poetas, gente inútil, que não faz a mínima ideia de como se desmonta e volta a montar uma simples carabina Heimat» (p. 41). O confronto é entre a pacatez de um camponês do norte que gosta de ouvir rouxinóis e a turbulência de um sargento que prefere a música das armas, é entre as liberdades individuais e os regimes tirânicos, é entre a ineficácia e a eficácia, é entre um rouxinol e um Arromba. O pormenor das alcunhas não é despiciendo numa narrativa que oferece um tratado acerca da arte de nomear. Digamos que tal como uma alcunha se refere a um indivíduo privilegiando a imaginação em detrimento da realidade, também neste romance, que nasceu como peça de teatro, evoluiu para conto e acabou numa história de quase 300 páginas, assim sucede.
Pelo meio há uma revolta em curso que dará em revolução, mas não é a dos cravos nem a dos capitães nem a de Abril nem a da liberdade. Afinal estamos em 1972, data em que anacronicamente já passam na televisão o Big Brother, Acorrentados e um tal Uma Câmara na Sanita. Não vale a pena buscar comparações e paralelismos onde se tira maior riqueza do relatado sem recurso a referências ou alusões. O divertimento está, precisamente, na inverosimilhança do que nos é contado para problematização, seja essa a vontade do leitor, de um conflito escondido por detrás das aparências: o da bota esquerda que aperta o pé da sentinela como o dever de obediência nos aperta a liberdade individual, essa que está sempre a ser testada por uma consciência que não se compadece com a mera observância da lei dos burocratas castrados pela solidariedade corporativa.
O confronto nuclear nesta história surge representado nas figuras do mancebo Benjamim da Silva Boavida, «um pobre soldado em prova de sentinela», e do sargento Cipriano Arrobas, alcunha Arromba: «Sim, eu sei que há quem goste disso: poetas, gente inútil, que não faz a mínima ideia de como se desmonta e volta a montar uma simples carabina Heimat» (p. 41). O confronto é entre a pacatez de um camponês do norte que gosta de ouvir rouxinóis e a turbulência de um sargento que prefere a música das armas, é entre as liberdades individuais e os regimes tirânicos, é entre a ineficácia e a eficácia, é entre um rouxinol e um Arromba. O pormenor das alcunhas não é despiciendo numa narrativa que oferece um tratado acerca da arte de nomear. Digamos que tal como uma alcunha se refere a um indivíduo privilegiando a imaginação em detrimento da realidade, também neste romance, que nasceu como peça de teatro, evoluiu para conto e acabou numa história de quase 300 páginas, assim sucede.
Pelo meio há uma revolta em curso que dará em revolução, mas não é a dos cravos nem a dos capitães nem a de Abril nem a da liberdade. Afinal estamos em 1972, data em que anacronicamente já passam na televisão o Big Brother, Acorrentados e um tal Uma Câmara na Sanita. Não vale a pena buscar comparações e paralelismos onde se tira maior riqueza do relatado sem recurso a referências ou alusões. O divertimento está, precisamente, na inverosimilhança do que nos é contado para problematização, seja essa a vontade do leitor, de um conflito escondido por detrás das aparências: o da bota esquerda que aperta o pé da sentinela como o dever de obediência nos aperta a liberdade individual, essa que está sempre a ser testada por uma consciência que não se compadece com a mera observância da lei dos burocratas castrados pela solidariedade corporativa.
Sem comentários:
Enviar um comentário