sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

TEMPO DE ERROS

 


   Em Setembro Marrocos tremeu. Durante uma semana as imagens que chegavam de Marraquexe e arredores comoviam o mundo à hora da refeição. Tanto quanto se sabe, morreram mais de 2000 pessoas. Depois Marrocos desapareceu do mapa. Ou porque o interesse se voltou para outras tragédias ou porque a indústria do turismo obrigou à discrição, ficámos sem saber de Marrocos. Nem nos acontecimentos do ano figura o sismo de Marraquexe-Safim.
   Eis-nos diante do abismo, a vertigem noticiosa obriga a um êxtase continuado que nos levará rapidamente à loucura se não desligarmos do mundo. O desinteresse já não é vício, é metodologia. A indolência é uma espécie de filtro, o impermeável que vestimos para nos protegermos das intempéries do mundo. Estamos ligados, como se nota, mas de mãos voluntariamente atadas ao algoritmo que decide por nós o que mais convém, mediante dados estatísticos infalíveis (ou quase). A breve trecho, se não já, notaremos os efeitos da depuração nas obras humanas que, se antes se aventuravam na exploração do desconhecido ou na imersão nos pântanos da realidade, no futuro resultarão de visitas a museus, de vidas sentadas ao computador, de existências resumidas e reduzidas ao estudo nas universidades com a cabeça encafuada em bibliotecas poeirentas. Abriremos um livro e inspiraremos fundo como quem cheira um vinho, testando quanto de sangue haverá nele. Mas às narinas e ao palato chegarão apenas os odores e aromas incipientes e anódinos do metatexto. Não se trata de substituir a vida pela teoria, de hipotecar os perigos da existência, mas de uma outra forma de viver e de existir, com o corpo a salvo das feridas, protegido pela vacina da normalidade que padroniza e uniformiza tornando tudo numa amálgama indiferenciada de sensações, emoções, reflexões.
   Nesse “Tempo de Erros” (Antígona, Julho de 2023) que foi o do marroquino Muhammad Chukri (1935-2003) as coisas eram ligeiramente diferentes. Depois de haver relatado a infância e a entrada na adolescência em “Pão Seco”, ele prossegue neste livro uma autobiografia que é também um retrato da água bebida em fontes de «água pura-túrbida da miséria». O que agora dá a ver é a chegada ao mundo da literatura de um homem que começou a alfabetizar-se aos vinte anos, rodeado de miséria e de crueldade, vindo «de um clã de chulos, ladrões, contrabandistas e putas».
   A prosa de Chukri é seca como um deserto, mas não nos priva dos seus oásis de humanidade e de ternura (os capítulos dedicados à mãe, por exemplo). Em três frases consegue sintetizar-nos o seu universo com a clareza de quem esbofeteia o sono ao leitor: «A pobreza conspurcou-nos os rostos. Não nos deixou nada, só o que permitia sermos identificados como seres humanos» (p. 26). Pela tradução de Hugo Maia apercebemo-nos do desafio que deve ser colocar estas páginas numa língua que não a daquele que viveu o que é relatado, ainda que possa parecer fácil pelo discurso literal sintetizado em frases curtas como cuspidelas de memórias sobrepondo-se umas às outras.
   Assistimos à transformação do Autor acompanhada pela transformação de uma realidade social, a de Tânger — «cidade maldita, mas minha, por mais que fujamos um do outro» (p. 38) —, num país que só em 1956 foi declarado independente. Os factos reportam a esses primeiros anos da independência, uma independência nacional representada por metonímia na independência de um homem que corta o cordão umbilical com a família, aprende a ler e a escrever, dedica-se à literatura e redescobre a sua liberdade entre aqueles com quem sempre conviveu: bêbados e prostitutas.
   Em capítulos geralmente curtos, reunidos como numa colectânea de contos, fala-nos das amantes, dos loucos com quem se cruzou, do alcoolismo, dos internamentos, das leituras, do «demónio da literatura», da busca de consolo nos livros, das pequenas vitórias, da derrota garantida, dos jogos imundos do amor, da indigência que só sobrevive gerando mais indigência, das ruas, do liceu, da vida no internato, da experiência falhada como professor, dos cheiros, da doença, e fá-lo com a urgência de quem precisa mesmo de nos contar o que está a ser contado. Leia-se este excerto, a páginas 90, para ser mais perceptível como se apresenta já tão longínquo o futuro:
 
   «Escrevo alguns capítulos desta autobiografia em 1990. No Verão do ano passado, Nutahara, o meu amigo orientalista japonês, veio visitar-me a Tânger na companhia da sua mulher, Shuku. Estava a traduzir o “Pão Seco” para japonês. Depois de trinta páginas, parou. «Pensei que se visitasse os sítios onde os acontecimentos decorrem, a tradução seria mais fácil, precisa e clara…», assim me disse ele. Começámos em Tetuão para regressar a Tânger. A primeira coisa que fomos ver foi o tanque. Tirou-lhe imensas fotografias de todos os ângulos. Quando acabou, disse:
   — No teu livro, descreves este tanque, e o que há em seu redor, com muita beleza, apesar de ele não ser belo nem parecer ter sido.
   Respondi-lhe com a mesma amabilidade.
   — Essa é a missão da arte: embelezar a vida até nas suas formas mais horríveis. Este tanque ficou-me impresso na memória de infância como sendo belo, por isso devo recordá-lo com a mesma impressão, mesmo que fosse um tanque cheio de lama. Além disso, estava afastado daqui, tanto em termos espaciais como temporais, quando o descrevi.»

4 comentários:

ZMB Mur disse...

Não admira que ela tenha voltado para a companhia dos seus amigos árabes depois de se iludir com a literatura e os escritores eram esses? Nem mais que os ditos Ocidentais: beatnicks americanos, franceses e outros expatriados, que iam para Tanger pelo mesmo motivo que os hippies depois foram para Katmandu: Droga em abundância e barata, e sexo imperial e a troco de meros trocos.
Um exemplo: Brion Gysin, poeta e pintor, gay, colaborador de WS Burroughs, viveu e geriu um restaurante em Tanger, foi responsável pela descoberta dos Masters Musicians of Jajouka que foram gravados pelo Brian Jones dos Stones.
Ouça o que ele diz de Choukri: «avoid arabs who carry books under their arms, my arab friends couldn't read or write», ou seja, preferiria-os burrinhos e escravos que sexualmente o servissem e dele tomassem conta.

https://www.youtube.com/watch?v=FHV9Dpy_WJk (a partir do min 22m57s: Thoughts on Jean Genet)

Ivo disse...

O Pão Seco é impossível de não ser lido de uma assentada. No final deixou a sensação de vazio. É daqueles livros que remexem neurónios.

Transhümantes disse...

Obrigado pela dica, desconhecia o autor e estou curioso.


Abraço


hmbf disse...

Saúde.