domingo, 28 de janeiro de 2024

PETIÇÃO FEITA AO REGEDOR, DE UMA NOBRE MOÇA, PRESA NO LIMOEIRO DA CIDADE DE LISBOA, POR SE DIZER QUE FIZERA ADULTÉRIO A SEU MARIDO, QUE ERA NA ÍNDIA

 


Esprito valeroso, cujo estado
O alto Deus prospere e acrecente,
Regendo o fiel Reino descansado,
Com vida felicíssima e contente;
A vós, em quem o húmil necessitado
Acha sempre favor e amor ardente,
Peço queirais ouvir, que, na verdade,
Zelo e amor de Deus me persuade.
 
Não vos seja pesado o atrever-me
A querer empreender sujeito alheio,
Porque fizeram lágrimas mover-me
Vir ante vós, ousado e sem receio
E se por tal quiserdes conhecer-me,
Servindo-vos de mim, por algum meio,
O nome, o braço, a Musa, e quanto posso,
Há já muito, Senhor, que tudo é vosso.
 
Quem vos isto oferece, dirá quanto
Desejo, muito há já, ser-vos aceito,
Por que, com vosso zelo e favor santo,
Faça meu rude verso algum proveito;
Que, cobrindo-me vós com vosso manto,
A eu ser nobre tendo algum respeito,
Sei que posso ganhar o que não tenho,
Pois me não faltam forças nem engenho.
 
Porém isto, Senhor, deixando à parte,
Que rezão é devida a que me guia,
A vós venho, com força, engenho e arte,
Por influxo do Céu, que a vós me envia:
A vós, a quem têm dado Apolo e Marte
De seus tesouros parte e melhoria,
Venho cantar, com voz rouca e chorosa,
Por ῦa encarcerada desditosa.
 
A vós venho, Senhor, na confiança
De vosso nome pondo meu sentido,
Que quem em vós confia, tudo alcança,
Sendo cousa de que deus é servido;
E pois ele vos deu justa balança
Pera pesar justiça e dar ouvido,
Ouvi a petição da miserável,
Com quem Fortuna foi tão pouco afável.
 
Ouvi da pobre Dona Caterina
O grande desamparo inopinado,
A quem nenhum remédio determina,
Ou permite seu duro e cruel Fado;
Que, se na tenra idade foi mofina,
Sua vida entregando ao vão cuidado,
Haja nisso castigo com brandura,
Porque o medo a fará viver segura.
 
Haja, senhor, cuidar, que é moça pobre
Que pobreza não tem nenhum respeito,
E mais não tendo idade que lhe sobre,
Pera saber fugir do que é malfeito;
Haja também cuidar que é sangue nobre
E ao jugo da Igreja inda sujeito,
E que pode nacer de tal processo
Um grande e cruelíssimo sucesso.
 
Certo que, com rezão urgente e clara,
Tem algῦa rezão e infelice;
Que, se ninguém recolhe, nem empara
A triste, órfã na flor da meninice,
A Fortuna cruel, em tudo avara,
Pera lhe acarretar triste velhice,
Lhe entrega a honra e pura castidade
Nas mãos de ῦa vital necessidade.
 
Bem sei que de ter culpa não carece,
Só por não ser do sangue seu lembrada,
Mas dê-se-lhe o castigo que merece,
E não pera tão longe desterrada;
Que, se pera lá for, bem se conhece
Quão vilmente será vituperada,
Dando motivo ao rudo marinheiro
Que seja incontinente carniceiro.
 
Vede, Senhor, o risco, a que se obriga
A desditosa e frágil mocidade,
Se honra não vai buscar ou parte amiga
Que lhe defenda sua honestidade.
Não queirais não, Senhor, que o mundo diga:
Ah! que grande rigor e crueldade!
Como já vai dezendo e murmurando,
Sua grande ignorância desculpando.
 
Eu, certo, não duvido, que o piloto,
O mestre, o marinheiro, o capitão,
Usem do costumado vício roto
Com todas as que em seus poderes vão;
Dai-me vós, Senhor, um que estê remoto
De tal delícia, nesta ocasião;
E eu derei ser falso o que vos digo,
Tomando sobre mim todo o castigo.
 
Já não há i João posto em deserto,
Que seja ao Céu, por casto, tão aceito,
Nem há quem não cometa desconcerto,
Nessa torpeza bruta, e vil sujeito:
Já não há i Hierónimo tão certo,
Que, com pedra na mão, ferindo o peito,
Da carne estimulado, assi lhe diga:
Não te chegues a mim, carne inimiga!
 
A culpa é dos parentes descuidados,
Que, vendo-a sem amparo e sem abrigo,
Em tempo, que os mais ricos e esforçados,
Temendo a Deus, fugiam seu castigo,
Uns pera seus jardins determinados,
Outros por onde o Céu lhes fosse amigo,
A deixaram tão só nesta cidade,
Batalhando com a vil necessidade.
 
Pois quem houvera aí que não caíra,
Vendo-se em tal extremo, em tal miséria?
Qual Artemisa aqui não consentira?
Qual romana Soprónia, ou qual Valéria?
E qual Lucrécia fora que isto vira,
Que não rendera o jugo à vil matéria?
Qual tebana Timóquia, ou linda Sara,
Ou qual mulher de Ulisses se negara?
 
Qual fora a que se vira em tão infesta
Batalha, turbulenta e espantosa,
Exercitando a morte rija e mesta
Seu duro ofício, brava e rigorosa;
Que ninfa houvera aí, que deusa Vesta,
Em virginal estado poderosa,
Que não rendera a tudo o casto nome,
Por não morrer nas mãos da dura fome?
 
Ah! valeroso esprito, caso é sito
Pera se dar perdão à fraca ovelha;
Não seja o perdão seu, seja de Cristo,
Pois ele a perdoar nos aconselha.
Assi nos altos céus sejais benquisto,
E vos incline Deus atenta orelha;
Que vos lembre, Senhor, seu desamparo,
Pois sois dos pobres pai e amigo claro.
 
Por isso olhai, Senhor, o quanto importa
Cortar ocasiões com fio agudo,
Porque, não se cortando, abre-se a porta,
Do lascivo desejo ao nauta rudo.
E se, como vos digo, esta se corta,
Olhando bem as leis do claro estudo,
Será grandeza vossa mui subida,
Dessa real prosápia produzida.
 
Olhai que tem, Senhor, ῦa menina
Do ausente consorte, e filha sua,
Muito desamparada e pequenina,
Fora do natural, despida e nua.
Sede vós, Senhor, água da Piscina;
A vosso zelo tudo se atribua;
Que, movendo-vos ele, não duvido
Que tudo a ela seja concedido.
 
Luís de Camões (1524? – 1580?)


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