domingo, 31 de março de 2024

UM POEMA DE JOSÉ RICARDO NUNES


23.

Abandonei um par de sapatos
em Milão, em Malta
umas calças, uma camisola
ficou em Alcalá de Henares, nas costas
de uma cadeira, em Nova Iorque
(para onde nunca viajei)
o blusão que comprara nos saldos.

Lapsos, deliberações, actos falhados?
Não incluo na lista peças miúdas,
espalhadas pelo chão de muito sítio, nem o cachecol
que confiei a um amigo nessa noite
em que tive ganas de o apertar até ao fim.

Em todo o caso, vestuário
e calçado bastante para me trajar
por inteiro e que outro qualquer
passou a usar ou foi destruído, alguém
atirou para o fundo de um armário.

Havendo ainda que considerar a hipótese
inversa, a de ter sido o corpo
largado por aí aos poucos
e andar a roupa à solta,
quero dizer, nua, sem estar eu lá dentro.

José Ricardo Nunes, in De Humani Corporis Fabrica, não (edições), Abril de 2024, p. 33.

1 comentário:

Transhümantes disse...

Não conhecia o autor, mas tem poesia nas palavras.
Obrigado pela nota.

Abraço