domingo, 24 de março de 2024

VOX HUMANA

 


Um livro surpreendente, é o mínimo que pode ser dito acerca deste “Vox Humana” (Companhia das Ilhas, Março de 2024), de Joaquim M. Palma (Vila Viçosa, 1952). O nome do Autor não será estranho a quem conheça, por exemplo, “O Eremita Viajante [haikus – obra completa]”, de Matsuo Bashô, tradução assinada pelo Autor de “Doze Fronteiras” (Documenta, 2020) e “Impressões Insulares” (Companhia das Ilhas, 2021), relatos de viagens com um olhar perscrutador que o turismo de massas se vem encarregando de aniquilar. 
   O ponto de partida de “Vox Humana” é a música, um vasto e distinto reportório que oferece mote a cada um dos poemas. Pela relação de proximidade com aquela que Confúcio considerava ser a mais elevada das artes, este é um livro na linha de obras tais como “Arte da Música” (1968), de Jorge de Sena, “Música Antológica & Onze Cidades” (1997), de Rui Pires Cabral (1967), “O Bosque Cintilante” (2008), de Amadeu Baptistia (1953), ou “Compositores do Período Barroco” (2013), de José Ricardo Nunes (1964), todos eles muito diferentes entre si quanto a forma e conteúdo. Neste caso, a música apresenta-se enquanto lugar de beleza, é uma espécie de refúgio, mas não totalmente impermeável, alheio ou indiferente à crueldade e à barbárie que vem tingindo os dias. É o facto de oferecer beleza ao mundo, e de essa beleza poder ser acolhida pelo ouvinte, que torna ainda mais óbvia a indigência moral dos homens imersos nos pântanos sociais, quotidianos, que nos surgem enquanto reverso do ritmo, da harmonia, das melodias que suspendem a realidade abrindo caminho à quietude: «esta música é tudo o que precisas / para chegares inteiro ao fim do dia» (p. 32). 
   Curtos, amiudadamente aforísticos, os poemas de Joaquim M. Palma percorrem os trilhos da história da humanidade, lembram-nos factos reflectindo sobre eles, retirando dessas reflexões conclusões que se nos apresentam como máximas sobre temas tão diversos como o lugar do homem na natureza, o papel da religião, a vida política, a guerra, a morte, etc.. Partindo invariavelmente do excerto de uma canção, de uma ópera, de uma ária, o poema desenvolve-se e ganha forma autónoma sem se libertar por completo da sua raiz. É fruto de uma outra voz com a qual esta agora estabelece um elo inquebrável, não necessariamente acrítico. Um exemplo da página 121:
 
“…ich mocht so gern nach Haus!…”
 
ILSE WEBER
Ich Wandre durch Theresienstadt
 
Quando uma poeta é encerrada num campo de
concentração nazi e escreve num papel amarrotado
ah como eu gostaria de voltar a casa! e se oferece para
morrer com as crianças que tem junto de si (entoando
para elas uma canção de embalar enquanto a câmara
se enche de gás), este escriba nascido um decénio
após o holocausto não vai usar palavras poéticas (nem
quaisquer outras) para falar sobre o assunto. Porque de
tal é incapaz. Haverá alguém que o consiga?
 
   São mais ou menos 270 páginas de vozes a ressoar num coro tão heterogéneo quão problematizador da precariedade humana no centro do cosmos. O panorama é abrangente, nele cabe «este nosso rastejar reptiliano» (p. 83) exterminador do mundo natural, cabem oceanos de lágrimas vertidas pelas mães dos filhos abatidos em guerras, cabe um «país rural a mando de canalhas» (p. 102), cabem os deuses, humanos, demasiado humanos, memórias de infância, a actualidade e suas variadas servidões, e cabe a beleza rara e pura do que nos resgata de uma ideia de civilização erigida sobre os escombros da Terra: «Escutando esta música, queremos lá saber da / expectativa na salvação das almas ou na falta de confiança nos demais seres humanos» (p. 173). 
   Há, portanto, um louvor à música implícito nestes textos, um elogio à música enquanto interrupção do fragor que nos acossa diariamente, esmagando-nos, sufocando-nos, conspurcando-nos. O fim para que tudo tende é o silêncio, encontro com a paz reveladora «da não-acção» (p. 231). Parece-me claro que a sabedoria inerente a estes textos, concebidos sob a forma de poemas, é devedora de fontes orientais por onde o Autor-tradutor tem vogado com resultados para nós, leitores, impagáveis, mas o que nela há que mais surpreende não é tanto a repercussão das raízes como é o modo de ironizá-las, de as transportar para este nosso tempo requestionando sem deslumbres a matéria de que somos feitos:
 
“Why should men quarrel…?”
 
HENRY PURCELL
Why Should Men Quarrel?
 
Porque brigam os homens entre si
se isso alimenta e engorda
as sombras das suas cavernas?
Que se juntem numa clareira
todos os que adoram a violência
e se aniquilem mutuamente
até não restar um sequer.
 
E logo ali despontará o alvorecer
de uma nova civilização de homens bons
onde ninguém morrerá antes de ser velho
e tudo se cumprirá segundo a sagrada lei
da beleza
da alegria
e do nunca presente temor.
 
Joaquim M. Palma, in “Vox Humana”, Companhia das Ilhas, Março de 2024, p. 214.

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