E como se o chicote das pestes já não bastasse, o medo da
doença transformou-se numa nova doença.
Em Inglaterra, os médicos atendiam pacientes que se
julgavam frágeis como potes de barro e que se afastavam das pessoas para
evitarem chocar com elas e partir-se; e, em França, Molière dedicou ao doente
imaginário a última obra que criou, dirigiu e onde actuou.
Troçando das suas próprias manias e obsessões, Molière
gozava de si próprio. Ele representava a personagem principal: enterrado nos
almofadões da sua poltrona, envolto em peles, com o barrete até às orelhas,
submetia-se a continuas sangrias, purgantes e clisteres, receitados pelos
médicos que lhe diagnosticavam bradipepsia, dispepsia, apepsia, lienteria,
disenteria, hidropisia, hipocondria, hipocrisia...
A obra estreara há pouco tempo, com êxito, quando uma
tarde todo o elenco lhe suplicou que suspendesse a sessão. Molière estava muito
doente, deveras doente e não com febre imaginária. Respirava mal, tossia muito
e quase não conseguia falar e andar.
Suspender a sessão? Ele nem se deu ao trabalho de
responder. Os colegas convidavam-no a trair o reino onde nascera e vivera,
desde aquele dia em que deixara de ser quem era e se transformara em Molière
para divertir o bom povo.
E, nessa noite, o doente imaginário fez rir, mais do que
nunca, o público que enchia a sala. E o riso, escrito e desempenhado por
Molière, ergueu-o acima das suas penúrias e do seu pânico de morrer, e graças
ao riso, que de tudo se ria, nessa noite desempenhou o melhor trabalho da sua
vida. Tossiu até rebentar o peito, mas não esqueceu uma única palavra do seu
papel e quando vomitou sangue e caiu ao chão, o público acreditou, ou soube,
que a morte fazia parte da obra, e ovacionou-o enquanto o pano caía com ele.
In "Espelhos - Uma História Quase Universal",
tradução de Helena Pitta, Antígona, Junho de 2018.
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