Numa mesa intergeracional, discutíamos ontem as
dificuldades da vida. Que agora é tudo mais complicado, que dantes isto, que
dantes aquilo. E lá vêm as dificuldades para comprar casa, como se dantes
comprar casa fosse uma facilidade. Nestas alturas lembro-me sempre de Fernando
Pessoa, que viveu toda a vida entre quartos alugados e com parentes que lhe
deram de guarida. Quando era miúdo, a entrada de Lisboa por Alverca era um
desfile de barracas sem fim, muita gente construía a primeira habitação com as
próprias mãos, outros arrendavam tugúrios onde iam desenrascando a vida.
Dificuldades sempre houve, e não creio que o mundo de hoje apresente menos
alternativas e soluções do que o mundo de ontem. Temos outra consciência das
misérias do mundo, que nos entram por casa ao segundo, assim como nos
voluntariamos para a escravidão do sucesso calculado a peso como coisa
material. A vida é uma luta, sempre foi, e é bom que despertemos cedo para o
sacrifício que é vivê-la lidando diariamente com injustiças que já Camões
cantava há 500 anos. Ao argumento de que são as pessoas mais velhas as próprias
que se queixam constatando que isto agora é muito pior, não tenho como responder
senão afirmando-me cúmplice da sua velhice. Já não vou para novo, sei bem que
quando tinha vinte era tudo menos pesado. Como não hão-de os velhos louvar o
passado? Foi no passado que foram jovens. Agora vêem mal, perderam dentes, as
pernas não respondem como respondiam, usam aparelho nos ouvidos, o tesão não
ateia como ateava. É compreensível que o passado lhes seja mais leve do que o
presente. Acabo de ler um livro de poesia que me interpela igualmente sobre
estas e outras questões, não tão vulgares. E nele encontro versos em que esse
contraste entre passado e presente se resolve sem enfatizar demasiado a
fugacidade da vida. Estes, por exemplo, dizem-me muito: «Somos feitos de
esquecimentos sucessivos» (p. 57). Extraordinário poema, essa “Viagem À Gaveta
do Fundo” que Inês Lourenço (1942) nos oferece em “Ainda o Lugar Incerto da
Procura” (Glaciar, Agosto de 2024), o seu mais recente livro de poemas. O
título é revelador, sobretudo aquele advérbio de tempo que nos coloca diante de
um momento de perseverança e obstinação
na busca de sentido. Em três conjuntos, a poeta de “Logros Consentidos”
interroga o ofício da escrita — À Esquina do Versos —,
evoca cumplicidades poéticas — Os Caules Submersos —,
viaja num espaço que é o do tempo perene, através dos lugares e da arte nesses
lugares semeada e colhida — Errâncias. Será, talvez, um livro de revisitação do
vivido, como é de elogio à poesia, marcado por um sentimento de finitude e de
despedida que nos deixa, a espaços, com a respiração tomada pelo tom elegíaco. Veja-se esta breve “Despedida”: «Terei de me despedir / das palavras
que ateio em redor / de um multiplicado ser / de escrita que dá a veia ao poema
/ para a circulação dos sentidos / que realmente ignoro» (p. 24). A despeito da
linguagem simples e despida, característica desta poesia desde a primeira hora,
há uma complexidade existencial nestes poemas que me cativa e leva a reflectir
nessas sombras que atravessam os tempos deixando-nos a sensação de que,
independentemente das percepções subjectivas que possamos ter do que as
mudanças trazem, o essencial permanece inalterado, seja ele do domínio da
beleza ou do horrível, do bem ou da maldade. Empédocles dizia que na criação do
mundo pelejavam o Amor e o Ódio. Talvez assim seja. O homem é um ser precário,
a vida é um lugar de passagem, essas coisas triviais que se dizem são, no
final, a única sentença verdadeiramente honesta perante a precariedade da vida.
Não gostava que ficasse desta leitura, porém, a ideia de um livro tingido de lamentos.
É exactamente o oposto. De resto, a poeta não se desvia da sua força crítica,
tantas vezes incisiva e implacável. É disso exemplo também este poema curto
intitulado “Lepra?”: «Nem isso, Jorge. Alguns iludidos / pelos placebos online
/ só preferem chagas virtuais / com muitos seguidores // E assim entorpecidos /
num linguajar tautológico / vão emagrecendo / o corpo milenar da poesia» (p.
44). É a este corpo milenar que Inês Lourenço presta homenagem com os poemas
deste livro marcado por horizontes lúgubres, como em “A Anunciada Certeza” se
percebe de um modo evidente. Outro belíssimo poema leva o título de “As Túlipas”,
nele se estabelecendo um improvável encontro entre o fim trágico de Sylvia
Plath e versos guilhotinados pela grande máquina do mercado livreiro. Um
poema para fechar a prosa, um dos últimos, de um livro que merece e vai certamente
ser lido como um dos belos momentos da poesia portuguesa destes tempos que são
os nossos e os daqueles que em nós perduram:
NESTE ESCURO E SINUOSO ABRIGO
Não sei se voltarei viva para algum lugar de escombros
que o estrépito das bombas e o zunir dos mísseis
anunciam ou se acordarei num campo de refugiados
entre tendas choros e fedor de excrementos. Às vezes
numa pequena pausa do ribombar monstruoso e longínquo
neste escuro e sinuoso abrigo, invento uma forma
de não enlouquecer; algo que ninguém
pode arrancar da minha memória, o aroma
do mansaf cozinhado pela minha mãe, esse glorioso
arroz de cordeiro assado de que o profeta
não desdenharia. E vou cismando na impossível partilha
desta terra
com demasiadas pátrias, demasiados deuses, demasiados
clamores
de vingança na anulação do outro. Está
escuro. Quero sair daqui. Quero um país.
Inês Lourenço, in “Ainda o Lugar Incerto da Procura”,
Glaciar, Agosto de 2024, p. 71.
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