"Il faut que l' herbe pousse et
que les enfans meurent"
Victor Hugo
É preciso que as crianças morram e as ervas cresçam
que em todas as palavras uma criança morta
conduza pela mão o corpo ao corpo do seu corpo
e que a casa para sempre seja só esta e esta seja outra
É preciso de noite entrar no quarto devagar
à luz da morte que incendeia o pó de cada ombro
onde pulsam os pássaros cegos cujos vultos de súbito
a música dispara na concha de assombro de uma onda
É preciso deixar subir as lágrimas antigas
ao mais nosso e só único dos rostos que não fomos
e se perdeu de febre irmão dos lobos que alucinam
ou nunca dormem por excesso de fadiga a vida toda
É preciso por fim soltar a eternidade ao largo
do mar que nos procura a cada instante em branco
enquanto despes da última ave o voo da tua carne
e despertam as crianças mortas nas ervas do meu sangue
Miguel Serras Pereira (n. 1949), de O Mar a Bordo do Último Navio (1998). in À Tona do Vazio & Reprise, Barricada de Livros, 2.ª edição, 2022, pp. 187-188. «Serras Pereira aparenta ser um poeta do renascimento après la lettre, dono de um burilamento lexical de que não está arredado o gosto pela sintaxe dita latina, invertida. Para naturalizar e dar coloquialidade à voz do sujeito poético, esta sintaxe elimina quaisquer marcas diacríticas, apostando na ambiguidade e apelando assim à atenção do leitor no que toca à prosódia e ao ritmo. Em primeiro lugar, de referir como o campo lexical escolhido o aproxima ainda mais desse universo renascentista com o recurso platónico à temática do olhar. Por outro lado, surgem aqui, nestes curtos poemas, desdobramentos de vocabulário que se resumem no binómio morte-esquecimento por oposição a outro (vida-memória), onde as palavras substantivas gravitam à volta ora de um (noite, vazio) ora de outro (dia, horas)» (Ricardo Marques, idem).
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