sexta-feira, 12 de julho de 2024

SERENAMENTE SOBRE LANTERNAS

 


   No prefácio a “Serenamente Sobre Lanternas” (do lado esquerdo, Junho de 2024), da norte-americana Andrea Cohen (n. 1961), Manuel Portela sublinha a micronarratividade destes poemas como «testes de poetabilidade.» Sob o título “Micropercepções, micromemórias, micropoemas”, este prefácio sugere uma tensão entre a memória e a percepção como raiz fundadora dos poemas de Cohen coligidos e traduzidos por Francisco José Craveiro de Carvalho neste breve volume. A origem dos poemas é revelada no final. A maioria provém de “Everything” (2021), tendo os restantes sido originalmente publicados nos livros “Furs Not Mine” (2015), “Nightshade” (2019) e “Unfathoming” (2017).
   Andrea Cohen estreou-se em 1999 com “The Cartographer’s Vacation”, tendo desde então publicado oito livros. O mais recente, já deste ano, intitula-se “The Sorrow Apartments”. Esta colectânea agora vertida para português, em edição bilingue, permite-nos ficar com uma ideia da poesia da autora, pouco conhecida entre nós. Que me recorde, ouvi falar dela pela primeira vez através de uma tradução do poeta Miguel-Manso divulgada online, o que faz sentido ao constatáramos afinidades estilísticas entre ambos os poetas.
   Os poemas de Cohen são geralmente breves, justificando o uso do prefixo micro, como faz Portela, para nos referirmos a eles, embora essa característica não esgote de todo a natureza de uma poesia que parece enraizar-se numa certa ideia de poesia oriental que pelo ocidente foi sendo generalizada. As referências a poetas chineses como Wang An-Shih e Su Tung-Po contribuem para tal aproximação, embora a referência ao argentino Roberto Juarorz me pareça mais adequada à compreensão de um labor poético onde mais do que memória e percepção parecem estar em tensão o instante e a reflexão. Esta tensão, característica de uma poesia minuciosamente depurada, coloca-nos no centro de uma paradoxal tentativa de conciliação do instante que motiva o poema, fugaz como um relâmpago, com os tempos maturados e longos da reflexão.
   Por detrás da brevidade e da concisão dos poemas antevemos uma maturação das imagens que torna possível a síntese, mesmo quando o que está em causa é uma espécie de jogo com as palavras que parte de uma premissa inusitada para obter uma conclusão inesperada. Esta dimensão lúdica observa-se, por exemplo, num poema como “Companheira de viagem”: «Ia para todo o lado / com uma mala vazia. // Nunca se sabe quando / precisamos de partir // à pressa sem nada» (p. 23). Há um aspecto irónico nesta poesia que não a condena à gratuitidade humorística precisamente porque mais do que ao trocadilho e a brincadeiras polissémicas, paronímicas, entre outras tão do agrado geral, eles fundam múltiplas possibilidades de sentido recorrendo ao máximo para o reduzirem ao essencial. É o que acontece neste “Espelho”: «Teria pagado / o que fosse // por um / com outra // cara nele» (p. 51).
   Outro exemplo, no campo daquilo a que poderíamos chamar poema social, é este cortante “Protocolo”: «O primeiro ministro / do Japão vai // visitar Pearl Harbor / e, à semelhança do // Presidente dos E. U. A. / em visita a Nagasaki, // não apresentará desculpas» (p. 69). No extremo oposto do poema-piada, que vive do anedótico para entreter cabeças pouco exigentes, estes poemas não dispensam a reflexão crítica que os fundamenta, surgem-nos como sínteses de percepções e de pensamentos capazes de conjugar, na sua extrema simplicidade, a complexidade do mundo com a tentativa de compreensão de quem o observa com distanciamento profiláctico. Podemos sempre dizer, o que não estará de todo errado, que a espaços se assemelham a aforismos partidos em verso. E daí? O que é um poema senão prosa em verso? Regressamos à tal micronarratividade sublinhada por Manuel Portela no prefácio, característica de tanta poesia actual que, mais cinismo, menos cinismo, lá vai resistindo à prosa enfatuada dos dias:
 
Colheita
 
As peras que te
não dei há seis anos
 
não conseguem
parar de apodrecer.
 
Andrea Cohen, “Serenamente Sobre Lanternas”, tradução de Francisco José Craveiro de Carvalho, prefácio de Manuel Portela, do lado esquerdo, Junho de 2024.

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