segunda-feira, 8 de julho de 2024

UM SEM-ABRIGO

 



   No metro, em Paris, entraste numa carruagem e sentaste-te num assento desdobrável. Três estações mais tarde, veio sentar-se um sem-abrigo ao teu lado. Cheirava a queijo, a urina e a merda. Hirsuto, virou-se para ti, fungou várias vezes e disse: «Huuuumm, cheira a perfume de velha.» Tinhas-te perfumado de manhã, antes de sair. Por uma vez, um sem-abrigo fazia-te rir. Habitualmente, esse género de personagens inquietava-te. Não te sentias ameaçado, nenhuma desventura te havia sucedido por causa de algum deles, mas temias acabar da mesma forma. Contudo, nada justificava o teu receio. Não eras solitário, pobre, alcoólico, abandonado. Tinhas uma família, uma mulher, amigos, uma casa. Não tinhas falta de dinheiro. Mas os sem-abrigo eram como os espectros anunciadores de um dos teus fins possíveis. Não te identificavas com as pessoas felizes, e, no teu exagero, projectavas-te naqueles que tinham falhado em tudo, ou que não tinham tido sucesso em nada. Os sem-abrigo encarnavam essa fase última de um declínio para o qual a tua vida podia tender. Não os vias como vítimas, mas como os autores da sua própria vida. Por mais escandaloso que isso possa parecer, acreditavas que alguns sem-abrigo tinham escolhido viver assim. Era o que mais te desassossegava: que um dia pudesses escolher degenerar. Não abandonares-te, o que seria apenas uma forma de passividade, mas quereres descer, degradares-te, tornares-te uma ruína de ti mesmo.

Édouard Levé, in Suicídio, tradução de Diogo Paiva, Cutelo, Abril de 2024, pp. 54-55.


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