é preciso este silêncio
estar só
ouvir a voz que não é minha e procurá-la
resta só não me pertencer
é preciso
e como precisam
e quantos precisam
e não são génios não estão neste momento para si mesmo
sonhando sonhos génios em que se concebem génios e geniais
famintos da voz que eu também procuro incessante
a palavra muda
é preciso este silêncio
estar só ainda que acompanhado
pelo dia, dias, pela note, noites, pelo mundo, mundos
morte, rosa, tília
se enlouquece, génio, estrela
é preciso este silêncio
estar só
silente e efémero
nos encontrámos não encontramos
vazio sem sair do cerco
da cidade da terra da aldeia da muralha da larva
se enlouquece
de sons e estrelas, luas, notas deste tempo compassado e
branco
é preciso este silêncio
da chuva batendo copiosamente no vidro abundantemente só
e generosa
na água este silêncio de estar só
espelho exacto, fundo e preciso
um refúgio de areia e sombras
são precisas palavras de sol para acordar
estar só em silêncio para ouvi-las e quem as diz ou quem as
não quer dizer
não grito sol nem pele queimada
é preciso estar só e comer laranjas
no cansaço das folhas o apagar das árvores
o mergulhar do verão no outono fundo quase inverno quase
primavera fria
e o frio estanca o sangue a palavra amor, estar só
é preciso este silêncio dos livros
fechados ao mundo em si esquecidos
e este mundo é esquecimento e os homens aborrecimento
estar só
olhar olhar apenas
olhar os olhos apenas o mar
olhar aberto e nada apenas
o nada se deixa ver e encontrar
nada se escolhe
nada se escuta
nada se executa
e como este silêncio é preciso
porque sou pouco e pobre quase esquecimento
e o mundo está fechado num livro de outro dia
soterrado morto cheira a mofo a morte e a sorte
neste silêncio de luto e terra
é preciso é preciso
estar só
ouvir a voz que não é minha e encontrá-la
noutra boca
resta só não me pertencer
todo o perfume que cheiro
me lembra tua mão tatuada
e noutra mão
a boca
o mel dos teus seios espigas
morosa a língua acorda
o abandono
desse aroma silencioso de cópula
esculpem-se as sombras
no silêncio das paredes
as sombras num quarto abandonado
onde se expiram as palavras
William Junqueira, É preciso este silêncio, Amores Perfeitos, Novembro de 2002, pp. 55 - 57.
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