domingo, 17 de novembro de 2024

JOSEF, NORUEGUÊS, CIGANO

 

«Um dos livros mais bonitos que apareceram na Noruega nos últimos anos é sem dúvida o Livro das cabanas-abrigos (koie) termo que designa cabanas ou abrigos primitivos usados normalmente como sítio de pernoita temporária. Ainda hoje existem uma série delas que são propriedade pública e que podem ser usadas gratuitamente por turistas ou viandantes. Neste livro, uma edição luxuosa com belíssimas fotografias (da Gyldendal), o historiador-etnógrafo Thor Gotaas em parceria com M. N. Pettersen, traça a história das pequenas e rudimentares cabanas ao longo dos tempos; utilização que tiveram, e a sua localização geográfica. Como é hábito nos livros de Thor Gotaas, a propósito de um tópico ou assunto historiado, aparecem sempre histórias de indivíduos. É um dos encantos dos seus livros. A forma como resgata do esquecimento seres anónimos e já esquecidos reconstruindo-lhes a dignidade ao apresentá-los ao público.

É aqui que encontramos Josef e a sua história ao longo de 16 páginas. Quando a mãe de Josef morreu de parto, o rapaz, nascido em 1900, foi dado pelas organizações religiosas para adopção a uma família de acolhimento. Tinha sete anos. Cresceu, como qualquer adolescente, só que sob suspeição e vigilância das missões sempre suspeitosas das criançãs da sua etnia ("tinham no sangue" o nomadismo, a pouca vocação para o trabalho e a inquietude, quando não a propensão para a vigarice e criminalidade, segundo as crenças da época) e no final da adolescência já tinha sido marcado pela comunidade local como problemático. Quando não como delinquente. Jovem adulto, os seus crimes montavam já a ter roubado de uma barrica ou balde (em ajuntadilha com outro) uns arenques, ter escavacado um ancinho e ter feito um corte numa mochila. Tais delitos, mais o defeito de ser respondão e irreverente, foram suficientes para o enviar para a prisão no início dos anos vinte. E da prisão para o asilo, porque agora na prisão juntava-se ao anterior estigma dos zelotas religiosos a ciência dos zelotas da higiene racial. O diagnóstico médico dava-o como atrasado mental. E aí, no asilo, passou grande parte (segunda metade) da década de 1920, com tratos de animal irracional.

Libertado, voltou às imediações de Dokka, à paróquia de Østsinni, onde se tornou trabalhador florestal. Como era hábito na época, os trabalhadores viviam em pequenas cabanas provisórias, de reduzida dimensão, aquando dos cortes de madeira. Josef, não tendo a quem voltar e suspeitoso da sociedade (com boas razões, já que a sua etnia foi perseguida, as crianças retiradas aos pais, os adultos enviados para campos de trabalho, acabando a última humilhação na proibição de ter cavalos - quando ao longo de séculos tinham sido os melhores fornecedores de cuidados veterinários, a ponto de o exército não passar sem eles especialmente nos séculos XVII e XVIII) foi ficando. E encontrou nos pequenos abrigos a sua casa. Passou a viver isolado, de cabana em cabana, em espaços diminutos 10, 15 metros quadrados (coisa que pode ter as suas conveniências quando no inverno os termómetros passam dos 20 negativos) numa vida espartana, a partir de dado momento subsistindo de caça e pesca, visitado apenas por amigos fiéis de forma esporádica.

O que é curioso na história de um homem com este tipo de vida e neste tipo de isolamento em que passou a viver durante as décadas de 30, 40 e 50, é que Thor Gotaas o descreve, intitulando até com essa característica um sub-capítulo, como leitor voraz = cavalo de leitura = lesehest. Lia de tudo o que apanhava. Jornais, poesia, romances, monografias sobre natureza. Os seus autores preferidos, Hans Børli, o poeta norueguês que melhor cantou as florestas e Mikkjel Fønhus* romancista que tinha na natureza selvagem e nos cenários das florestas os seus temas favoritos. Viveu anónimo, mas imagino que os seus autores favoritos não teriam desdenhado saber que tinham um leitor assim (…). Olhando a história de Josef no livro de Gotaas, ilustrado pelas belíssimas fotografias que lhe tirou Arne Rignes, o título do subcapítulo (lesehest - cavalo de leitura) e os testemunhos de amigos fiéis que o descreveram como homem inteligente e sensível, dou comigo a pensar que os leitores ideais destas páginas teriam sido os zelotas da religião e da higiene racial que o classificaram de atrasado mental e que o privaram de liberdade durante quase uma década. Já é tarde. Mas servem de exemplo a outros. E aqui fica.»


Vítor Rodrigues (no Facebook)

Sem comentários: