LUGAR PRECÁRIO
“O Homem da Guitarra” (Guitarmannen, 1997), de Jon Fosse (1959), foi editado exactamente no mesmo ano em que o agora Nobel da Literatura norueguês deu à estampa “O Filho” (Sonen, 1997), levado à cena pelo Teatro da Rainha, com encenação de Fernando Mora Ramos, em 2018. Há entre ambas as peças uma curiosa coincidência, a referência a um filho ausente que estigma a existência dos protagonistas. No entanto, e apesar da similar ambiência poética, são peças assaz diferentes uma da outra.
“O Homem da Guitarra” que o actor Tiago Moreira adoptou num projecto prontamente acolhido pelo TdR é um monólogo, um debate a solo entre um músico de rua e a sua condição existencial. A própria figura do músico de rua coloca-nos perante uma representação da precariedade que oferece vários ângulos de reflexão acerca das condições de sobrevivência de um indivíduo na sua relação com a família e com a sociedade em geral, para lá, obviamente, desse abismo íntimo em que muitas das personagens de Fosse parecem situar-se.
Neste caso, creio que será especialmente importante atentarmo-nos aos pormenores, ao que sobre si a personagem revela numa linguagem elíptica, repleta de hesitações, uma linguagem minimalista que, segundo o próprio Autor, se baseia no silêncio. O que diz o silêncio? Diz-nos, antes de mais, da solidão a que está condenado o indivíduo, do seu distanciamento face aos outros, da sua separação de uma mulher que o trouxe ali e de um filho que ali o fixou, naquela cidade fria. Depois o silêncio vai sendo preenchido por frases curtas, um mínimo de palavras, sussurros, bloco de gelo que apenas parece quebrar-se quando a música ecoa na sala através da voz grave do Tiago. É nesses momentos que o som afasta definitivamente a cortina de neblina intrometida entre o homem da guitarra e o público.
O que melhor caracteriza este homem é o anonimato, um anonimato desfeito como quem desenha pequenos traços numa página em branco até obter uma figura mais definida. O ambiente intimista logrado pelo desenho de luz de Hâmbar de Sousa favorece a soturnidade em que o protagonista se nos dirige. Ele diz-nos das pessoas que passam diariamente por ele sem darem pela sua presença, fala-nos das crianças que o insultam, de um ou outro transeunte que mete conversa sem gerar laços, dos laços familiares quebrados como cordas partidas numa guitarra. E enquanto pausadamente nos conta estas coisas, dá-se-nos a ver ele próprio como uma centelha na escuridão, expondo-nos à sua solidão e frustração pessoais, à sua intimidade atravessada pela dúvida: valerá a pena continuar, insistir?
Já chamaram “ode à desesperança” a esta peça de Jon Fosse. Creio que, mais do que desesperança, vislumbramos neste texto uma interrogação profunda sobre a condição humana, com envios claros, em mais do que uma citação directa, para o livro do “Eclesiastes”. Talvez não seja displicente recordar o percurso do próprio Fosse, que do ateísmo à conversão ao catolicismo em 2012 experienciou uma espécie de misticismo herético à maneira de Mestre Eckhart (teólogo alemão que viveu entre os séculos XIII e XIV). Em entrevista ao jornal Público datada de Março de 2024, é o próprio autor norueguês quem fala desse percurso revelando o seguinte: «Durante uns anos estive perto dos quakers noruegueses. Não têm padres, nem dogmas, apenas encontros silenciosos. O seu modo de acreditar é concentrarem-se na luz interior.»
Tal com o sábio Qohelet no “Eclesiastes”, também o homem da guitarra parece atravessar momentos de dúvida, destacando as contradições da vida, as incertezas quanto ao futuro, as perdas, as derrotas, as ilusões e o sentimento de desilusão, as conquistas que se resumem a meia dúzia de esmolas no bolso ao final do dia, num rol de dúvidas a que responde recorrendo a essa máxima ancestral proveniente do Antigo Testamento: «Tudo tem o seu tempo.» O que nesta peça levada à cena e interpretada por Tiago Moreira está em causa é, portanto, uma exploração trágica do lugar precário do homem no mundo, sempre com o fantasma da desistência no horizonte das decisões adiadas.
“O Homem da Guitarra” (Guitarmannen, 1997), de Jon Fosse (1959), foi editado exactamente no mesmo ano em que o agora Nobel da Literatura norueguês deu à estampa “O Filho” (Sonen, 1997), levado à cena pelo Teatro da Rainha, com encenação de Fernando Mora Ramos, em 2018. Há entre ambas as peças uma curiosa coincidência, a referência a um filho ausente que estigma a existência dos protagonistas. No entanto, e apesar da similar ambiência poética, são peças assaz diferentes uma da outra.
“O Homem da Guitarra” que o actor Tiago Moreira adoptou num projecto prontamente acolhido pelo TdR é um monólogo, um debate a solo entre um músico de rua e a sua condição existencial. A própria figura do músico de rua coloca-nos perante uma representação da precariedade que oferece vários ângulos de reflexão acerca das condições de sobrevivência de um indivíduo na sua relação com a família e com a sociedade em geral, para lá, obviamente, desse abismo íntimo em que muitas das personagens de Fosse parecem situar-se.
Neste caso, creio que será especialmente importante atentarmo-nos aos pormenores, ao que sobre si a personagem revela numa linguagem elíptica, repleta de hesitações, uma linguagem minimalista que, segundo o próprio Autor, se baseia no silêncio. O que diz o silêncio? Diz-nos, antes de mais, da solidão a que está condenado o indivíduo, do seu distanciamento face aos outros, da sua separação de uma mulher que o trouxe ali e de um filho que ali o fixou, naquela cidade fria. Depois o silêncio vai sendo preenchido por frases curtas, um mínimo de palavras, sussurros, bloco de gelo que apenas parece quebrar-se quando a música ecoa na sala através da voz grave do Tiago. É nesses momentos que o som afasta definitivamente a cortina de neblina intrometida entre o homem da guitarra e o público.
O que melhor caracteriza este homem é o anonimato, um anonimato desfeito como quem desenha pequenos traços numa página em branco até obter uma figura mais definida. O ambiente intimista logrado pelo desenho de luz de Hâmbar de Sousa favorece a soturnidade em que o protagonista se nos dirige. Ele diz-nos das pessoas que passam diariamente por ele sem darem pela sua presença, fala-nos das crianças que o insultam, de um ou outro transeunte que mete conversa sem gerar laços, dos laços familiares quebrados como cordas partidas numa guitarra. E enquanto pausadamente nos conta estas coisas, dá-se-nos a ver ele próprio como uma centelha na escuridão, expondo-nos à sua solidão e frustração pessoais, à sua intimidade atravessada pela dúvida: valerá a pena continuar, insistir?
Já chamaram “ode à desesperança” a esta peça de Jon Fosse. Creio que, mais do que desesperança, vislumbramos neste texto uma interrogação profunda sobre a condição humana, com envios claros, em mais do que uma citação directa, para o livro do “Eclesiastes”. Talvez não seja displicente recordar o percurso do próprio Fosse, que do ateísmo à conversão ao catolicismo em 2012 experienciou uma espécie de misticismo herético à maneira de Mestre Eckhart (teólogo alemão que viveu entre os séculos XIII e XIV). Em entrevista ao jornal Público datada de Março de 2024, é o próprio autor norueguês quem fala desse percurso revelando o seguinte: «Durante uns anos estive perto dos quakers noruegueses. Não têm padres, nem dogmas, apenas encontros silenciosos. O seu modo de acreditar é concentrarem-se na luz interior.»
Tal com o sábio Qohelet no “Eclesiastes”, também o homem da guitarra parece atravessar momentos de dúvida, destacando as contradições da vida, as incertezas quanto ao futuro, as perdas, as derrotas, as ilusões e o sentimento de desilusão, as conquistas que se resumem a meia dúzia de esmolas no bolso ao final do dia, num rol de dúvidas a que responde recorrendo a essa máxima ancestral proveniente do Antigo Testamento: «Tudo tem o seu tempo.» O que nesta peça levada à cena e interpretada por Tiago Moreira está em causa é, portanto, uma exploração trágica do lugar precário do homem no mundo, sempre com o fantasma da desistência no horizonte das decisões adiadas.
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