sábado, 7 de dezembro de 2024

UM POEMA DE ROSA OLIVEIRA

 


VALENCIÀ

quando nós tivermos a idade deles
eles que têm um terço da nossa idade
quando nós tivermos a idade deles
o que diremos de diferente daquilo que já dissemos?
como cruzaremos as mãos por cima da mesa
do restaurante italiano no coração de Valência?
quando tivermos a idade deles
como faremos para lidar com a morte
que se aproxima a passos largos e sonoros?
talvez como lidamos com a música
heroinómana de Chet Baker espalhando
migalhas calculadas de Irving Berlin
na mesa invariável de toalha de xadrez

quando tivermos a idade deles
seremos mais sensatos do que fomos
falaremos neerlandês e diremos
com o sorriso actual e envergonhado deles
que no nosso país não se cozinha
não temos tempo a perder
simplesmente não podemos perder o nosso
precioso puritano tempo
a derreter sabores que duram segundos
usando legumes que nem sabíamos existirem
não podemos desperdiçar o nosso
funesto vigoroso tempo
a dissolver sombras no palato
ocupados com a evolução da liga hanseática

quando tivermos a idade deles
como faremos para ser diferentes do que fomos?
como amaremos a tempo de sermos nós a dizer
que valeu a pena sermos algo parecido com o que somos?
o que faremos do tempo, única, insolúvel questão
entre os dedos frágeis do presente metido a passado?

Rosa Oliveira, in Errático, Edições Tinta-da-China, Agosto de 2020, pp. 81-82.


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