«Quase um século e meio decorreu desde a morte de Nietzsche, ou, pelo menos, desde a morte do seu pensamento intransigente. A ciência avançou a passos largos, a técnica a passos monstruosos. Eis que, no momento presente de declínio da linguagem e do pensamento, de desabamento da ética e perda da crítica, da tentativa de redução da linguagem a uma única língua em estado elementar e titubeante, uma epistemologia da manipulação premeditadamente arquitectada se ergue e exerce o seu poder destrutivo e o multiplica e propaga através dos continentes.
Neste impasse, as máquinas assumem as funções que os homens declinam e nelas delegam, incluindo a função suprema, a de pensar o mundo e a sua presença nele. Ou seja: renúncia a retomar o pensamento filosófico recebido, como imperativo, dos grandes séculos da Grécia antiga.
Novos avanços da técnica, que aproveitam o mimetismo humano sem limites e o hedonismo desenfreado que grassa, confundem e enfim apagam a fronteira entre verdade e mentira e instauram um paradigma encobridor, que é um paradigma de domínio: a 'vontade de poder', a famosa Wille zur Macht, exercida agora contra a procura da verdade. — Vontade de mentira como vontade negativa de poder!
Assim se proclama a figura grotesca da pós-verdade, manobrada e disseminada por meio de tecnologias subtis da falsificação (como a chamada 'inteligência artificIal', ou certo uso que dela se faz), apagando os critérios de distinção entre verdade e mentira, entre verídico e frauduloso, e encaminhando as sociedades do mundo presente rumo a estados inferiores da condição humana.
A procura de conhecimento seria, assim, como uma arquitectura de prodigiosas figuras de retórica que incutem nos humanos (exultantes, no seu hedonismo néscio, com o crescer da técnica) a sensação fictícia de um saber que se esquiva.
Na sua limpidez extrema, na sua inocência, a verdade última — a aletheia — encobre-se ao nosso olhar e ilude os nossos esforços, enquanto anima o jogo do mundo.
António Vieira, in Entre Verdade e Mentira a partir do ensaio de Nietzsche, prefácio a Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido Extra-Moral, de Friedrich Nietzsche, tradução de Gilda Oswaldo Cruz, livros nanook, Companhia das Ilhas, Abril de 2025.
Sem comentários:
Enviar um comentário