O
dia e a hora de Maria vir à fala com o poeta Ruy Belo calharam numa cervejaria
em parte incerta para os lados da Avenida de Roma. Maria tinha-se deitado de
madrugada depois de uma daquelas reuniões do Sindicato que nunca mais acabavam
e deitara-se com o despertador ligado porque na manhã seguinte, feriado, havia
uma manif do Povo Unido. Nunca se soube se chegou a adormecer ou se
entressonhou, o que se soube é que andou às voltas no travesseiro com aparições
desordenadas que metiam Alexandra pelo meio, uma Alexandra que se passeava nua
e a discursar. Também andava no espaço qualquer coisa esfrangalhada, qualquer
coisa como uma nave de desesperados de onde saíam slogans comerciais; de quando
em quando a nave soltava um jacto breve, uma pequena explosão, e vomitava
criaturas esbracejantes que ficavam a gravitar até ao infinito. Todas elas eram
a Alexandra multiplicada na mesma figura, cada qual com um relogiozinho de
outro pendurado em brinco de orelha mas a verdadeira Alexandra, essa, estava cá
em baixo com os pés na terra. De tempos a tempos atravessava o sonho, nua e com
uma mancha nebulosa em vez de rosto, e passava pela Maria sem a ver, dizendo Oh,
estou-me nas tintas, como que conversando em viagem com alguém.
Tudo aquilo ocorria a uma luz metálica, gelada. Ouvia-se uma voz de carrossel que gritava Marketing Revolucionário, e corria um vento feroz que arrastava as criaturas volantes em rotações à volta da nave. Nave que de repente se tinha transformado no quê?, no edifício da Alpha Linn? Parecia. Mas a verdade era apenas uma armação vazia, sem vidros, aço e cimento; estrutura oca, nada mais. Depois, escorria de lá uma massa verde, lodosa, e só então é que a Maria viu que todas as casas e todas as ruas estavam inundadas com o mesmo líquido pastoso. Borbulhava slogans em massa de vulcão. Agora não se ouviam vozes, não havia gente, onde estava a Alexandra? Maninha, chamou ela, voltada para as criaturas que percorriam o céu.
Saltou da cama para a rua, à procura de uma chávena de café para despertar. Algures logo ao virar da esquina apareceu-lhe uma cervejaria que aprecia mesmo à espera dela. Estava aberta a meia porta e à primeira vista não tinha ninguém, só mesas cobertas de cascas de mariscos. Toda a casa se encontrava de lâmpadas acesas apesar de ser dia.
Mas quando a Maria se encaminhou para o balcão, descobriu que diante de um acampamento de canecas de cerveja havia um vulto. Nãos e podia ver da entrada porque estava encoberto por uma coluna de lagostas vivas dispostas numa vitrina quase até ao tecto.
Maria sentou-se ao balcão no sítio onde acabava o estendal de canecas vazias e pousou a malinha e os óculos de sol no banco ao lado. O vulto lia A Bola apoiado numa cerveja a florir e espuma. Era um indivíduo louro e encorpado, um tanto para o gordo; cabeça à meia calva, salpicada dum orvalho que era o transpirar da fresca e esfuziante bebida matinal; mãos mimosas embora sólidas, de anjo camponês (se é que há disso, anjos camponeses). Maria viria a saber que estava na presença do poeta Ruy Belo que só conhecia pelo lido.
Como era de esperar, o poeta Ruy Belo ao vivo e em tal e qual não tinha nada que fizesse supor o dos versos. Bebia cavalarmente (coisa que não constava por escrito) pois já tinha com ele uns largos litros de cerveja e ainda a manhã ia no princípio. Lia A Bola com a devoção de quem lia o Plutarco, ao mesmo tempo que mastigava de maneira truculenta tremoços apanhados ao acaso e até migalhas deixadas no balcão sabe-se lá por quem.
Se o poeta Ruy Belo não fosse assim tão despassarado que até apetecia agarrar à mão a assoprar as penas, certamente que a Maria nunca teria dado por ele, ou se desse tê-lo-ia enfrentado com aquela brusquidão que lhe era conhecida. Mas o poeta Ruy Belo, que em verso escrevia com a claridade de um anjo de livro aberto, visto ao balcão e à cerveja era uma criatura desajeitada que ria música e dava gosto às palavras, cheio de verdade carnal. Saúde, era o que el parecia respirar por todos os poros – quem diria. Saúde, aquele português de quarenta e três primaveras mal regradas, quando se sabia que iria morrer daí a menos de dois anos mais precisamente no dia 8 de agosto de 1978, se as contas de Deus batessem certas. Verdade?
Mas isto também não tinha grande importância porque, disse ele quando começou a conversar com a Maria, «eu cresço e decresço, não reparo e anoiteço.» E como não reparasse, continuou a debicar tremoço aqui, migalha acolá, a toda a largueza do balcão. Ao mesmo tempo corriam para ele cervejas após cervejas, alegres e em cânticos de espuma, o que era verdadeiramente uma sedução. Esta maneira de resistir, matando-se, e a interrogação infantil que lhe iluminava o olhar fizeram com que a Maria se aproximasse.
«Menina», saudou-a ele, levantando a caneca à contraluz, «fez há pouco dois anos que veio a revolução e que me nasceu a minha filha Catarina. Só de me lembrar disto já não pode haver mundo que não me saiba a abril.»
Maria suspeitou que ele se exprimia em verso ou como tal. Com efeito falava sem a olhar mas rindo-se para não dar importância ao que dizia e que apenas lhe saía da boca porque o tinha escrito dentro dele. «Estás aqui comigo à sombra do sol e tenho pena de ser só isto», disse a certa altura. «E dói-me um braço, e sei que sou o pior aspecto do que sou.»
Maria: «Não é nada pior. Eu até tenho os seus livros todos.»
O poeta Ruy Belo se a ouviu não se mostrou entusiasmado. Mergulhou na caneca de cerveja e ficou por lá a pensar. Ao cabo de alguns instantes levantou a boca cheia de espuma:
«Acabo de inventar um advérbio: helenamente.» Acenou para o copo: «É isso. A maneira mais triste de estar contente.»
Voltou-se para a Maria: Helenamente, a maneira mais triste de estar contente não tinha nada a ver com estóicos nem com filosofias gregas, a boa menina que não pensasse. Aquilo vinha do nome duma mulher que só ele sabia, e queria dizer o mar, a terra, o fumo e a pedra simultaneamente. Helenamente, simultaneamente.
Calou-se, regressou à cerveja. Maria, de cotovelos apoiados no balcão como uma escolar atenta, olhava-o de olhos franzidos.
Lembrou-se então de uma tira de fotografias que lhe tinha saído há muito tempo numa cabina photomaton e que trazia sempre na malinha. Era a miúda do cravo, uma criança de lentes grossas, sorriso desesperançado, repetida em seis imagens iguais com um cravo seco na mão. Num dia em que precisara de renovar o bilhete de identidade a Maria entrara numa cabina, metera a moeda e, em vez dela, saíra-lhe aquilo. Devia ter lá ficado por engano – encravada, certamente.
Sem uma palavra cortou uma fotografia, destacando-a pela dobra como fazem os cauteleiros quando vendem uma fracção de lotaria, e estendeu-a ao poeta Ruy Belo. «É você?», perguntou-lhe ele mirando demoradamente a criança do cravo triste, e a Maria pensou: helenamente. Mas não respondeu. Sem saber, sorriu também com tristeza como o retrato.
O poeta Ruy Belo, com a boca parada na cerveja, ficou a interrogar a fotografia; tinha-a na concha da mão como se fosse um objecto secreto e delicado. Por fim pô-la de lado num pequeno espaço do balcão que limpou com a manga da camisa. Só daí a uns largos instantes é que tornou a falar. «Pois é», disse. «Estes dias assassinaram-nos de alegria.»
Maria: «Assassinaram-nos, é como quem diz. Isso foi a factura dos apressados, mano poeta, desculpe-me de o tratar assim. Eu pela minha parte estou até mais vivinha do que nunca e, olhe, agora mesmo vou para uma manifestação.»
Pelo sobressalto com que o poeta consultou imediatamente o relógio, percebeu que ele também ia. Só que não era de pressas, naquele homem tudo era castigadamente calmo, isso via-se pelos versos. Não devia haver pessoa mais demorada nem pessoa mais alegre pelos outros do que ele.
«Dez apenas conquistámos a cidade e até o próprio rei», cantou uma voz como que ao ouvido deles mas na realidade trazida da rua pela claridade da manhã. Aquilo, disse o poeta, eram os Capitães de Abril. Victor Hugo, acrescentou logo a Maria que conhecia os versos dos tempos da faculdade. Capitães de Abril, tornou o poeta com os olhos muito vivos de traquinice, aquela era a voz do Victor Hugo a cantar os Capitães de Abril, então ele não sabia? Mas numa volta de luz o rosto dele pôs-se de repente entristecido, os poetas tinham daquelas luas, pensou a Maria.
«Conquistámos a cidade», murmurou ele, «mas, como já dizia o Victor Hugo, fizemo-lo de maneira muito civil e restituímo-la depois ao rei. Essa é que nos lixou bem lixados.»
Passou a mão pela meia calva perlada de suores de cerveja, e ficou-se.
Nesse instante saltou para a frente dele um prato de caracóis que se pôs logo a despachar com a ponta dum alfinete. Introduzia o fiozinho de aço nos labirintos das modestíssimas cascas e com uma volta expedita sacava de lá umas vírgulas carnudas que levava à boca, deliciado. Suspendeu-se com uma delas atravessada no alfinete. «Eu hoje se houvesse infernos era dos infernos. Compreende?»
Maria calculou que o poeta Ruy Belo se referia aos tempos malditos da ditadura cristã, ele que tinha vivido por dentro os infernos da Igreja que eram mil vezes mais falsos que os infernos da Terra. Recordações do cristianíssimo reinado em que o cardela Cerejeira deitava gotinhas de água benta, era a isso que ele se referia com certeza. Via-o a comer caracóis com golinhos de cerveja, a sugar-lhes o molho pelas cascas e a limpar os beiços ao punho da camisa, e nesse desfiar de movimentos e de ruídos pareceu-lhe ter ouvido ou lido de memória uma frase de um livro dele: «No termo de uma aventura mística saí para a rua com um punhado de poemas.» Isto, lido (ou pensado) assim à frente de um balcão, soava-lhe a romantismo desastrado mas a verdade é que sem desastres nem romantismos não havia criatura nem revolução que resistisse.
Maria: «Estava a lembrar-me daquilo que você escreveu um dia, Pertenço a uma geração que perdeu o jogo do catolicismo.»
«Eu escrevi isso?», admirou-se o poeta Ruy Belo, sem parar de devorar caracóis. «Caramba, esta cerveja está picante que se farta. Deve ser do lúpulo.»
Maria: «E também sei que foi doutor da Igreja, que é que pensa? Doutor em direito canónico lá pela Universidade de Roma. Simplicíssimo, vem na biografia.»
Ele então acenou com a cabeça: «Sim, mas hoje Deus anda à beira de água de calça arregaçada.» Riu-se textualmente como no poema onde tinha deixado aquilo.
Então Maria lembrou-se de que ele escrevia deus com letra pequena e sabe-se lá com que furor ou com que paixão. Pois sim, mas havia um medo de Deus naquele gajo que até fazia impressão, pensou ela muito para si.
Maria: «Deus é das direitas. Aos ricos dá vida larga e ainda pede desculpa, para os pobres é só promessas para o sempiterno e a barriguinha que se foda. Ai, perdão.»
O poeta Ruy Belo, que não parava de desvirgular segredos de caracóis com a ponta do alfinete, pôs-se a alinhar as cascas vazias no balcão. «Caracóis, marisco do pobre», disse em voz pensativa. «O pior é que os pobres já nem a este marisco podem chegar.»
Ficou um instante em silêncio. Depois levantou a caneca mas ficou com ela parada diante da boca. «Pois é», murmurou então, «Deus complica tudo. Deus tapa e destapa pela nossa mão, a grande chatice é essa.»
Havia
uma paz misteriosa naquela cervejaria, um abandono desordenado e cheio de luz.
Ali não se sentia a cidade, era manhã de província, e a Maria, encavalitada num
banco alto, não dava mostras de despegar. Tinha-se esquecido do tempo, tão
grande era a sua curiosidade por aquele poeta que se debruçava sobre um naufrágio
de tremoços, espuma e cascas de caracóis.
Maria: «Sabe, conheço um padre aviador que anda na contra-sabotagem dos incêndios.»
Disse isto para dizer qualquer coisa; para cortar o silêncio que de repente se tinha feito entre os dois.
«Como?», perguntou o poeta Ruy Belo. Naquele momento acabava de puxar do lenço para se assoar mas ficou com ele na mão, a olhá-la.
Maria citou o nome de Miguel, talvez ele tivesse ouvido falar. Não tinha nada a ver com o Bartolomeu de Gusmão das passarolas e fora expulso de capelão depois de ter protestado contra a guerra colonial.
«Há aviões às vezes que levantam ideias, aviões que voam», disse o poeta Ruy Belo, dobrando o lenço.
Maria: «Não tenha dúvida.»
«Aviões aos quais as aves devem o voo», continuou ele.
Maria: «Absolutamente. Este deixou de se padre, actualmente voa de bombeiro.»
O poeta Ruy Belo fez um sorriso: «O costume. Os padres só quando deixam de ser padres é que descobrem chamas na terra.» De surpresa pegou no retrato – photomaton: «Verdade que não é você?»
Não havia dúvida que aquilo o tinha impressionado e de que maneira. Estudava a criança do retrato com gravidade, como se interrogasse a nacionalidade dos mortos. «Qual a tua nacionalidade, tu que antes eras portuguesa?», parecia ele perguntar àquela infância desconhecida. Isso porque a Maria era comos e já conhecesse de cor tudo o que ele pudesse dizer, uma vez que o sabia pelos livros. Não se admirava até que ele daí a pouco se virasse para ela e se pusesse a falar como naqueles versos das Terras de Espanha em que dizia, salvo erro, «Se eu te houvesse visto alguma vez, tu que nunca de noiva te vestiste porque nunca ninguém te mereceu», etecetera. Sim, mas isso, gaita, isso seria um lamber de ferida, uma endecha à barbara escrava que ela, Maria, dispensava perfeitamente, era o que faltava.
O poeta Ruy Belo continuava a fitar a criança do retrato:
«Tem a certeza que não é você?», perguntava ele à Maria sem se voltar.
Tudo isto aconteceu em manhã deserta e num balcão à flor de espuma, como foi dito. De tal modo que quando a Maria saltou do banco dizendo «Bom, creio que já falei de mais» e se despediu pedindo desculpa de alguma má palavra, a cervejaria continuava à meia porta e não se ouvia movimento na rua. Ou, melhor, não se ouvia até um dado momento porque de repente entraram três carregadores anões, três possantes touros de perna curta, a rolarem tambores de cerveja até ao balcão num estrondo de abalar o mundo. Calçavam umas luvas amarelas, fluorescentes, que lhes davam pelos cotovelos.
Foram rolando tambores atrás de tambores (aquela casa devia ser de grande consumo) e quando acabaram ligaram-nos às torneiras de pressão. Nessa altura ouviu-se um assoprar medonho, e foi um festival, um ver se te avias, subiram jactos de vapor ao correr das torneiras do balcão como uma cortina de repuxos de jardim, nasceu uma nuvem bravia e a casa cobriu-se de cintilações.
Já à porta, Maria olhava, fascinada, o poeta sentado de fotografia na mão, agora envolvido por uma neblina que rescendia a fermentos de verão.
Por trás dela, na rua, a manhã descrevia uma curva suave, como diria o Ruy Belo.
José Cardoso Pires, in Alexandra
Alpha, 5.ª edição, Publicações Dom Quixote, 1998, pp. 423-431.
Tudo aquilo ocorria a uma luz metálica, gelada. Ouvia-se uma voz de carrossel que gritava Marketing Revolucionário, e corria um vento feroz que arrastava as criaturas volantes em rotações à volta da nave. Nave que de repente se tinha transformado no quê?, no edifício da Alpha Linn? Parecia. Mas a verdade era apenas uma armação vazia, sem vidros, aço e cimento; estrutura oca, nada mais. Depois, escorria de lá uma massa verde, lodosa, e só então é que a Maria viu que todas as casas e todas as ruas estavam inundadas com o mesmo líquido pastoso. Borbulhava slogans em massa de vulcão. Agora não se ouviam vozes, não havia gente, onde estava a Alexandra? Maninha, chamou ela, voltada para as criaturas que percorriam o céu.
Saltou da cama para a rua, à procura de uma chávena de café para despertar. Algures logo ao virar da esquina apareceu-lhe uma cervejaria que aprecia mesmo à espera dela. Estava aberta a meia porta e à primeira vista não tinha ninguém, só mesas cobertas de cascas de mariscos. Toda a casa se encontrava de lâmpadas acesas apesar de ser dia.
Mas quando a Maria se encaminhou para o balcão, descobriu que diante de um acampamento de canecas de cerveja havia um vulto. Nãos e podia ver da entrada porque estava encoberto por uma coluna de lagostas vivas dispostas numa vitrina quase até ao tecto.
Maria sentou-se ao balcão no sítio onde acabava o estendal de canecas vazias e pousou a malinha e os óculos de sol no banco ao lado. O vulto lia A Bola apoiado numa cerveja a florir e espuma. Era um indivíduo louro e encorpado, um tanto para o gordo; cabeça à meia calva, salpicada dum orvalho que era o transpirar da fresca e esfuziante bebida matinal; mãos mimosas embora sólidas, de anjo camponês (se é que há disso, anjos camponeses). Maria viria a saber que estava na presença do poeta Ruy Belo que só conhecia pelo lido.
Como era de esperar, o poeta Ruy Belo ao vivo e em tal e qual não tinha nada que fizesse supor o dos versos. Bebia cavalarmente (coisa que não constava por escrito) pois já tinha com ele uns largos litros de cerveja e ainda a manhã ia no princípio. Lia A Bola com a devoção de quem lia o Plutarco, ao mesmo tempo que mastigava de maneira truculenta tremoços apanhados ao acaso e até migalhas deixadas no balcão sabe-se lá por quem.
Se o poeta Ruy Belo não fosse assim tão despassarado que até apetecia agarrar à mão a assoprar as penas, certamente que a Maria nunca teria dado por ele, ou se desse tê-lo-ia enfrentado com aquela brusquidão que lhe era conhecida. Mas o poeta Ruy Belo, que em verso escrevia com a claridade de um anjo de livro aberto, visto ao balcão e à cerveja era uma criatura desajeitada que ria música e dava gosto às palavras, cheio de verdade carnal. Saúde, era o que el parecia respirar por todos os poros – quem diria. Saúde, aquele português de quarenta e três primaveras mal regradas, quando se sabia que iria morrer daí a menos de dois anos mais precisamente no dia 8 de agosto de 1978, se as contas de Deus batessem certas. Verdade?
Mas isto também não tinha grande importância porque, disse ele quando começou a conversar com a Maria, «eu cresço e decresço, não reparo e anoiteço.» E como não reparasse, continuou a debicar tremoço aqui, migalha acolá, a toda a largueza do balcão. Ao mesmo tempo corriam para ele cervejas após cervejas, alegres e em cânticos de espuma, o que era verdadeiramente uma sedução. Esta maneira de resistir, matando-se, e a interrogação infantil que lhe iluminava o olhar fizeram com que a Maria se aproximasse.
«Menina», saudou-a ele, levantando a caneca à contraluz, «fez há pouco dois anos que veio a revolução e que me nasceu a minha filha Catarina. Só de me lembrar disto já não pode haver mundo que não me saiba a abril.»
Maria suspeitou que ele se exprimia em verso ou como tal. Com efeito falava sem a olhar mas rindo-se para não dar importância ao que dizia e que apenas lhe saía da boca porque o tinha escrito dentro dele. «Estás aqui comigo à sombra do sol e tenho pena de ser só isto», disse a certa altura. «E dói-me um braço, e sei que sou o pior aspecto do que sou.»
Maria: «Não é nada pior. Eu até tenho os seus livros todos.»
O poeta Ruy Belo se a ouviu não se mostrou entusiasmado. Mergulhou na caneca de cerveja e ficou por lá a pensar. Ao cabo de alguns instantes levantou a boca cheia de espuma:
«Acabo de inventar um advérbio: helenamente.» Acenou para o copo: «É isso. A maneira mais triste de estar contente.»
Voltou-se para a Maria: Helenamente, a maneira mais triste de estar contente não tinha nada a ver com estóicos nem com filosofias gregas, a boa menina que não pensasse. Aquilo vinha do nome duma mulher que só ele sabia, e queria dizer o mar, a terra, o fumo e a pedra simultaneamente. Helenamente, simultaneamente.
Calou-se, regressou à cerveja. Maria, de cotovelos apoiados no balcão como uma escolar atenta, olhava-o de olhos franzidos.
Lembrou-se então de uma tira de fotografias que lhe tinha saído há muito tempo numa cabina photomaton e que trazia sempre na malinha. Era a miúda do cravo, uma criança de lentes grossas, sorriso desesperançado, repetida em seis imagens iguais com um cravo seco na mão. Num dia em que precisara de renovar o bilhete de identidade a Maria entrara numa cabina, metera a moeda e, em vez dela, saíra-lhe aquilo. Devia ter lá ficado por engano – encravada, certamente.
Sem uma palavra cortou uma fotografia, destacando-a pela dobra como fazem os cauteleiros quando vendem uma fracção de lotaria, e estendeu-a ao poeta Ruy Belo. «É você?», perguntou-lhe ele mirando demoradamente a criança do cravo triste, e a Maria pensou: helenamente. Mas não respondeu. Sem saber, sorriu também com tristeza como o retrato.
O poeta Ruy Belo, com a boca parada na cerveja, ficou a interrogar a fotografia; tinha-a na concha da mão como se fosse um objecto secreto e delicado. Por fim pô-la de lado num pequeno espaço do balcão que limpou com a manga da camisa. Só daí a uns largos instantes é que tornou a falar. «Pois é», disse. «Estes dias assassinaram-nos de alegria.»
Maria: «Assassinaram-nos, é como quem diz. Isso foi a factura dos apressados, mano poeta, desculpe-me de o tratar assim. Eu pela minha parte estou até mais vivinha do que nunca e, olhe, agora mesmo vou para uma manifestação.»
Pelo sobressalto com que o poeta consultou imediatamente o relógio, percebeu que ele também ia. Só que não era de pressas, naquele homem tudo era castigadamente calmo, isso via-se pelos versos. Não devia haver pessoa mais demorada nem pessoa mais alegre pelos outros do que ele.
«Dez apenas conquistámos a cidade e até o próprio rei», cantou uma voz como que ao ouvido deles mas na realidade trazida da rua pela claridade da manhã. Aquilo, disse o poeta, eram os Capitães de Abril. Victor Hugo, acrescentou logo a Maria que conhecia os versos dos tempos da faculdade. Capitães de Abril, tornou o poeta com os olhos muito vivos de traquinice, aquela era a voz do Victor Hugo a cantar os Capitães de Abril, então ele não sabia? Mas numa volta de luz o rosto dele pôs-se de repente entristecido, os poetas tinham daquelas luas, pensou a Maria.
«Conquistámos a cidade», murmurou ele, «mas, como já dizia o Victor Hugo, fizemo-lo de maneira muito civil e restituímo-la depois ao rei. Essa é que nos lixou bem lixados.»
Nesse instante saltou para a frente dele um prato de caracóis que se pôs logo a despachar com a ponta dum alfinete. Introduzia o fiozinho de aço nos labirintos das modestíssimas cascas e com uma volta expedita sacava de lá umas vírgulas carnudas que levava à boca, deliciado. Suspendeu-se com uma delas atravessada no alfinete. «Eu hoje se houvesse infernos era dos infernos. Compreende?»
Maria calculou que o poeta Ruy Belo se referia aos tempos malditos da ditadura cristã, ele que tinha vivido por dentro os infernos da Igreja que eram mil vezes mais falsos que os infernos da Terra. Recordações do cristianíssimo reinado em que o cardela Cerejeira deitava gotinhas de água benta, era a isso que ele se referia com certeza. Via-o a comer caracóis com golinhos de cerveja, a sugar-lhes o molho pelas cascas e a limpar os beiços ao punho da camisa, e nesse desfiar de movimentos e de ruídos pareceu-lhe ter ouvido ou lido de memória uma frase de um livro dele: «No termo de uma aventura mística saí para a rua com um punhado de poemas.» Isto, lido (ou pensado) assim à frente de um balcão, soava-lhe a romantismo desastrado mas a verdade é que sem desastres nem romantismos não havia criatura nem revolução que resistisse.
Maria: «Estava a lembrar-me daquilo que você escreveu um dia, Pertenço a uma geração que perdeu o jogo do catolicismo.»
«Eu escrevi isso?», admirou-se o poeta Ruy Belo, sem parar de devorar caracóis. «Caramba, esta cerveja está picante que se farta. Deve ser do lúpulo.»
Maria: «E também sei que foi doutor da Igreja, que é que pensa? Doutor em direito canónico lá pela Universidade de Roma. Simplicíssimo, vem na biografia.»
Ele então acenou com a cabeça: «Sim, mas hoje Deus anda à beira de água de calça arregaçada.» Riu-se textualmente como no poema onde tinha deixado aquilo.
Então Maria lembrou-se de que ele escrevia deus com letra pequena e sabe-se lá com que furor ou com que paixão. Pois sim, mas havia um medo de Deus naquele gajo que até fazia impressão, pensou ela muito para si.
Maria: «Deus é das direitas. Aos ricos dá vida larga e ainda pede desculpa, para os pobres é só promessas para o sempiterno e a barriguinha que se foda. Ai, perdão.»
O poeta Ruy Belo, que não parava de desvirgular segredos de caracóis com a ponta do alfinete, pôs-se a alinhar as cascas vazias no balcão. «Caracóis, marisco do pobre», disse em voz pensativa. «O pior é que os pobres já nem a este marisco podem chegar.»
Ficou um instante em silêncio. Depois levantou a caneca mas ficou com ela parada diante da boca. «Pois é», murmurou então, «Deus complica tudo. Deus tapa e destapa pela nossa mão, a grande chatice é essa.»
Maria: «Sabe, conheço um padre aviador que anda na contra-sabotagem dos incêndios.»
Disse isto para dizer qualquer coisa; para cortar o silêncio que de repente se tinha feito entre os dois.
«Como?», perguntou o poeta Ruy Belo. Naquele momento acabava de puxar do lenço para se assoar mas ficou com ele na mão, a olhá-la.
Maria citou o nome de Miguel, talvez ele tivesse ouvido falar. Não tinha nada a ver com o Bartolomeu de Gusmão das passarolas e fora expulso de capelão depois de ter protestado contra a guerra colonial.
«Há aviões às vezes que levantam ideias, aviões que voam», disse o poeta Ruy Belo, dobrando o lenço.
Maria: «Não tenha dúvida.»
«Aviões aos quais as aves devem o voo», continuou ele.
Maria: «Absolutamente. Este deixou de se padre, actualmente voa de bombeiro.»
O poeta Ruy Belo fez um sorriso: «O costume. Os padres só quando deixam de ser padres é que descobrem chamas na terra.» De surpresa pegou no retrato – photomaton: «Verdade que não é você?»
Não havia dúvida que aquilo o tinha impressionado e de que maneira. Estudava a criança do retrato com gravidade, como se interrogasse a nacionalidade dos mortos. «Qual a tua nacionalidade, tu que antes eras portuguesa?», parecia ele perguntar àquela infância desconhecida. Isso porque a Maria era comos e já conhecesse de cor tudo o que ele pudesse dizer, uma vez que o sabia pelos livros. Não se admirava até que ele daí a pouco se virasse para ela e se pusesse a falar como naqueles versos das Terras de Espanha em que dizia, salvo erro, «Se eu te houvesse visto alguma vez, tu que nunca de noiva te vestiste porque nunca ninguém te mereceu», etecetera. Sim, mas isso, gaita, isso seria um lamber de ferida, uma endecha à barbara escrava que ela, Maria, dispensava perfeitamente, era o que faltava.
O poeta Ruy Belo continuava a fitar a criança do retrato:
«Tem a certeza que não é você?», perguntava ele à Maria sem se voltar.
Tudo isto aconteceu em manhã deserta e num balcão à flor de espuma, como foi dito. De tal modo que quando a Maria saltou do banco dizendo «Bom, creio que já falei de mais» e se despediu pedindo desculpa de alguma má palavra, a cervejaria continuava à meia porta e não se ouvia movimento na rua. Ou, melhor, não se ouvia até um dado momento porque de repente entraram três carregadores anões, três possantes touros de perna curta, a rolarem tambores de cerveja até ao balcão num estrondo de abalar o mundo. Calçavam umas luvas amarelas, fluorescentes, que lhes davam pelos cotovelos.
Foram rolando tambores atrás de tambores (aquela casa devia ser de grande consumo) e quando acabaram ligaram-nos às torneiras de pressão. Nessa altura ouviu-se um assoprar medonho, e foi um festival, um ver se te avias, subiram jactos de vapor ao correr das torneiras do balcão como uma cortina de repuxos de jardim, nasceu uma nuvem bravia e a casa cobriu-se de cintilações.
Já à porta, Maria olhava, fascinada, o poeta sentado de fotografia na mão, agora envolvido por uma neblina que rescendia a fermentos de verão.
Por trás dela, na rua, a manhã descrevia uma curva suave, como diria o Ruy Belo.
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