terça-feira, 3 de junho de 2025

DINOSSAURO EXCELENTÍSSIMO

 

ALARME GERAL
 
   De ponta a ponta do Reino os sinos badalaram a péssima notícia. Os médicos iam formigando por cima do quase cadáver; mas com poucas esperanças, avisaram – também por causa das moscas. Chamaram sábios estrangeiros à cause des mouches e because os les mouches, inventaram sangue, despejaram soro: litros e litros. Diziam: vamos a ver, vamos a ver.
   Houve velórios nos outeiros, altares à volta do retrato do Imperador. Discursos também, e muitos. Versos de despedida, lágrimas de sobreaviso. Os jornais iam anunciando em letras de caixão alto que para grandes povos, grandes desastres.
   Longe, em Cu de Judas, os camponeses excursionistas sabiam que iam ser chamados ao funeral e punham um olho no calendário, outro nas sementeiras, interrogando-se se viria em má altura. Nas repartições públicas suspirava-se fundo: desgraça por desgraça, ao menos que a morte calhasse em tal dia assim e assim para que o fim de semana fosse mais longo. Os comerciantes inquietavam-se: feriados de luto nunca beneficiavam senão uns tantos. Os presos sonhavam com amnistias e as beatas com embaixadas de estrangeiros em missas de grande pompa. Só os médicos não tinham descanso nem projectos.
   Cem dias e cem noites trabalharam no Imperador, apertados no difícil limite do entre a vida e a morte. Abriram e esfuracaram, substituíram, coseram. Eram génios minadores, feiticeiros de batas brancas, como asas. Com os seus martelinhos de prata, seus golpes em traço vivo, suas brocas, sua linha, com suas pinças de insecto, esvoaçaram por cima do Dinossauro. Limparam-lhe as bossas, reduziram-lhe o braço maior, e ao centésimo dia fizeram pausa. Para ver, para escutar. Ficaram na mesma.
   Cem dias e cem noites é obra, mas continuaram. Mais cem e outros cem, e de repente caíram para trás, espantados: o corpo começava a despertar, a emergir.
 
            «RESSUSCITOU!»
 
bradaram os frades na capela do Forte. Os conselheiros, com seiscentos diabos, marinharam pelas paredes, bravíssimos, porque já tinham arranjado outro imperador. Depois caíram em si e ficaram a olhar uns para os outros, sem pinga de sangue: E agora?
   Agora, para a frente e cara alegre.
   Os cirurgiões arrumaram o estojo das artes, atirando para um canto o retrato oficial que tinham estado a copiar com tanto esmero:
 
            «ORA GAITA!»
 
   Enquanto os outros médicos se desunhavam para dar vida ao Imperador, eles como cirurgiões da figura, tinham-se aplicado em lhe compor uma imagem da morte e isso dava trabalho, cansava. Naquele momento sentiam-se revoltados; desiludidos. Trabalho escusado, resmungavam eles, entre colegas.
   Na verdade, se o Imperador ia viver, como parecia que ia, lá estavam os espelhos ensinados, os jornalistas e a televisão para lhe dar a imagem corrigida. Era ou não era evidente? Era ou não era o que mandava o mais elementar raciocínio em estado normal de funcionamento das meninges e do sistema cárdio-vascular?, perguntavam os cirurgiões artísticos. No fim de contas tinham sido chamados para a morte, não para a vida. De certo modo consideravam-se
 
            «TRAÍDOS!»
 
   Pior, infinitamente pior, estavam os conselheiros que não descobriam onde se haviam de meter. Segredavam pelos cantos, sacudiam as penas, cheios de remorsos por terem tido a infeliz ideia de pôr outro imperador no trono. Murmuravam:
 
            «A VERDADE É QUE NINGUÉM PODIA
            PREVER TÃO EXCELENTÍSSIMO MILAGRE...»
 
            «ABSOLUTAMENTE, MAIS UMA VEZ A PROVIDÊNCIA
            PÔS A MÃO SOBRE O NOSSO MUITO AMADO CHEFE»,
 
concordavam os dê-erres com categoria de palacianos, ao passo que o Suprassumo Sacerdote, espetando os braços nas nuvens, não parava de proclamar:
 
            «RESSURREIÇÃO! RESSUREIÇÃO!»
 
   No final todos se dirigiram ao Deogracias omnipotente, reconhecidos por não ter abandonado o Douktor Dinosaurus, luz da pátria e arquitecto do século (segundo os dê-erres), trave da ordem (segundo os regedores das diferentes capitanias), pai e exemplo do lar (segundo as mães agradecidas), amen (segundo os clérigos).
   Tudo muito bonito, tudo muito bonito, mas – essência da questão – os conselheiros só gostavam de saber se o Mestre iria resistir à notícia de ter sido substituído. Sinceramente que receavam. Admitiam, era um supor, que, mesmo sem teo mando na mão, o Doutor Dinossauro os considerasse ingratos e se vingasse. Com um sujeito da força dele tudo era possível e os excelentíssimos apertavam a cabeça a ver se conseguiam espremer alguma ideia.
   Espremeram, finalmente. Tratariam o imperador como se ele ainda estivesse no trono. A máquina das palavras continuaria a lavar os mexilhões e o Douktor a cavalgar as caixas altas dos jornais. Nas estátuas nãos e tocaria, eram Arte!; nas notas do banco conservava-se a silhueta imperial iluminada a vinténs-ouro. Numa palavra, tudo na mesma, em faz de conta. E com isso garantia-se a paz dos cidadãos dentro do rumo que lhes estava traçado nos capítulos nevoentos da História – assentaram os cortesãos em causa.
 
As pessoas, Ritinha, têm a sua imagem natural da morte que é, penso eu, aquela que lhes deixou a vida que fizeram. Se encerramos um homem numa máscara é porque lhe estamos a cobrir toda a sua existência para trás. E se com essa máscara de morte lhe tornáramos a dar vida, pior ainda: temos o fantasma. Porque, fixa bem, só se é fantasma em forma de vivo. Mas lê o resto, que já vais ver onde quero chegar.
 
José Cardoso Pires, in Dinossauro Excelentíssimo, com ilustrações de João Abel Manta, Leya/RTP, 2016, pp. 120-125.

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