quarta-feira, 31 de dezembro de 2025

SABER PERDER

 


   São cerca de 600 os textos sobre livros que escrevi e depositei no weblog ao longo dos anos. Sei-o não porque um qualquer fetiche contabilístico me tivesse levado a contá-los, mas tão-somente por ser esse o número que surge à frente da categoria Leituras. Outros textos haverá que não ficaram catalogados nesta arca em rede, repousam nos arquivos como páginas esquecidas em pastas antigas. Há ainda os que acabaram editados em livro e revistas, alguns terão servido para prefaciar ou posfaciar obras alheias. Nunca pensei que alguém pudesse atribuir alguma relevância a esses exercícios íntimos, mas partilháveis, de organização de ideias, embora me aconteça amiúde verificar o contrário. Neste Saber Perder (Companhia das Letras, Fevereiro de 2025) reencontrei numa das badanas uma frase escrita sobre um dos dois livros de poesia de Margarida Ferra (1977), poeta editada pela &etc nos volumes Curso Intensivo de Jardinagem (2010) e Sorte de Principiante (2013). Foi preciso esperar uma dúzia de anos para voltar a lê-la em livro, não no formato vertical dos poemas partidos em verso, mas no formato horizontal de uma prosa que podemos classificar, sem que tais classificações assumam grande importância, de relatos autoficcionais. Releio o que então escrevi sobre o segundo livro da Margarida e creio não estar longe da verdade se o voltar a afirmar acerca destes textos em prosa, sobretudo no que diz respeito ao esforço de autoconhecimento empreendido nesta escrita.
   Coligidas sob seis títulos, um dos quais emprestado para identificação do conjunto, estas prosas não se cingem à forma do conto tradicional, ainda que possam ser lidas como contos. Porque não? Contos concebidos sob a forma de apontamentos breves, de tipo quase diarístico, dispostos tematicamente, formando uma malha de episódios, cogitações, viagens no espaço e no tempo, num tom intimista e de constante autorreflexão que nos cativa tanto pela sobriedade como pela elegância com que questionam o lugar do ser e das coisas no mundo em que se relacionam. Assim é quando o olhar se volta para um casal de imigrantes paquistaneses que procuram sobreviver no bairro como quando mergulha ao encontro das raízes familiares, deslocando-se da actualidade para um tempo mais ou menos distante em espaços circunscritos ao universo real da narradora. A vida doméstica é, por assim dizer, a cena onde a acção se desenrola, sendo o eu o protagonista desse drama clássico que é o de quem busca entender-se no mundo de que é parte integrante mesmo quando, pela escrita, tenta afastar-se, recolher-se, exilar-se, procurando o lugar de solidão em que as palavras escritas despertam. Álbuns de fotografias, objectos privados, joias de família, anéis e alianças, memórias de lugares e de pessoas, as casas e os seus recheios, compõem o acervo de uma museologia íntima de que a escrita faz parte:

   «Escrever um texto é como ajustar o vidro da vitrine do museu: separa-nos do mundo no tempo em que aconteceu, ao mesmo tempo que o dá a ver. As palavras escolhidas para uma paisagem, um encontro entre duas pessoas, uma história ouvida a alguém são apenas uma de todas as maneiras possíveis de inscrever esse recorte de realidade numa nova ordem, outra sequência, uma superfície onde não pertence, mas onde acaba por ficar» (p. 32).

   Será, então, escrever uma aprendizagem de morrer? Ou uma aprendizagem de perder? O que se perde pela escrita é o que pela escrita se resolve, pedaços ou fragmentos largados na página como artefactos soterrados por um tempo fechado que a arqueologia da leitura se encarregará de reabrir.  Há uma natureza fragmentária nos textos deste Saber Perder que me agrada bastante. A magia do fragmento repousa no desafio de reconstrução que nos propõe, tal como as ruínas de um edifício apelam à nossa imaginação. As viagens aludidas em alguns textos, nomeadamente as que se referem a um périplo grego, enviam-nos para essa dimensão interrogativa acerca do sentido, sem necessitarem de propor uma qualquer solução para o mais antigo problema do pensamento humano que não passe por uma espécie de abnegação ou desapego que consiste, pois bem, em saber perder. Até porque: «O mundo continua a funcionar, outras vidas decorrem sem eu ser chamada a encontrar objectos que não fui eu que perdi» (p. 49)

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