Goste-se ou não, valter hugo mãe (n. 1971) é um dos nomes mais relevantes da poesia portuguesa actual. Não sou especial apreciador, embora tenha lido metade dos seus livros de poesia: entorno a casa sobre a cabeça (1999), três minutos antes de a maré encher (2000, reeditado em 2004), a cobrição das filhas (2002) e útero (2003). Sobram, salvo erro, silencioso corpo de fuga (1996), egon schielle auto-retrato de dupla encarnação (1999), estou escondido na cor amarga do fim da tarde (2000) e o resto da minha alegria seguido de a remoção das almas (2003). valter hugo mãe publicou ainda dois romances: o nosso reino (2004) e o remorso de baltazar serapião (2006). Tenho o primeiro. Sócio de Jorge Reis-Sá nas Quasi Edições, aí publicou a maior parte da sua obra poética, tendo-se mudado recentemente para a Objecto Cardíaco – editora pela qual é responsável. É já nesta casa que surge, em Janeiro passado, este livro de maldições. Importa dizer, antes de mais, que a poesia de valter hugo mãe caracteriza-se, essencialmente, por uma forte pulsação metafórica, com uma clara tendência para o tétrico e pouco dada a alongamentos desnecessários. A concisão dos seus poemas, amanhados em verso curto e geralmente dispostos em sequências, confere-lhes um fôlego que raramente torna fastidiosa a leitura. O problema, quanto a mim, reside na ausência de riso, na por vezes forçada procura do efeito choque, assim como numa certa misantropia que procura fechar o leitor no miolo de uma perspectiva demasiado concentrada no outro lado do real. Há quem chame surreal a esse outro lado, há quem prefira acusar-lhe um certo adormecimento onírico ou, na melhor das hipóteses, o lugar onde o sonho intercepta a vigília. Eu, confesso, gosto de ver nestas coisas a inscrição de uma atitude, que, neste caso, passa por mandar às favas todo e qualquer convencionalismo, arriscando-se, porém, a ser tremendamente convencional na sua obstinação. O livro de maldições, não negando o passado, inflecte em alguns aspectos. Desde logo, trata-se de um livro de poemas em prosa com uma componente narrativa apenas implícita nos livros anteriores. Como é sabido, o poema em prosa confunde-se variadíssimas vezes com a pequena história. É o que acontece neste livro, repleto de situações improváveis, por vezes abjectas, onde o segundo significado esconde-se permanentemente sob a capa de personagens algo melindrosas. Um dos aspectos mais interessantes consiste na manifestação de imagens onde o corpo assume presença fulcral. Este corpo, não linear, apresenta-se em múltiplas metamorfoses, transmutações, em actos de mutilação e gestos dolorosos. Há uma componente visual nestes poemas que fácil e fascinantemente os transforma em retratos do mal, alicerçados numa mitologia muito própria onde o poema surge como uma solução mágica ou, dito de outra forma, como um esconjuro baseado nos trabalhos e nas receitas da magia negra. Assim, na maldição contra a triste normalidade deparamos com «animais sem asas (…) a quem o voo custava em dobro» (p. 10); na maldição contra quem usa dinheiro para o amor surge uma empregada com «duas cabeças, uma para se ocupar da cozinha, outra para se ocupar da educação da menina» (p. 15); na maldição contra quem não ama quem deve há uma mulher que corta a cabeça ao marido e vê-lo «morrer sem perder a convicção de que o futuro lhe traria a mais absoluta alegria» (p. 49). É neste ambiente de feitiçaria, onde a poesia ocorre sob a forma de histórias povoadas de estranhas personagens - homens que vomitam tijolos, homens com extensões anómalas no lado direito da barriga, mulheres com buracos na extremidade da dor, princesas que cortam palmos às pernas, amassam os seios e rasgam os lábios, etc, etc, etc – que valter hugo mãe erige aquele que é, quanto a mim, o seu melhor livro de poemas até à data.
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