Quando
ao chegar ontem a casa vos encontrei encantadas com o Dumbo de Tim Burton (n.
1958), lembrei-me que talvez estivesse na hora de vos falar do meu amigo ostra.
Burton dispensa apresentações. Sabeis do assombro e da fantasia, ele irmana nos
seus filmes a moral dos contos góticos e de horror com a estranha beleza de
personagens tão insólitas quão inusitadamente emotivas. Tendo começado a
trabalhar como animador nos estúdios da Walt Disney, detém ainda um
extraordinário talento para o desenho. Se vos comovestes com O Estranho Mundo
de Jack e A Noiva Cadáver, por certo ides encontrar no livro A Morte
Melancólica do Rapaz Ostra & Outras Estórias motivos mais que aliciantes
para uma leitura ao mesmo tempo divertida e pedagógica. Publicado pela Antígona,
com tradução da Margarida Vale de Gato, este objecto singular foi originalmente
editado em 1997. São estórias em verso, acompanhadas por ilustrações que certamente
ides associar aos filmes do autor. Importa dizer que em nenhuma
destas estórias a ilustração está presente como mero acompanhamento do texto,
sendo frequentes os casos em que entre ambos se estabelece um diálogo
complementar. Isso acontece mormente nos casos em que a estória é mínima, discorrendo
ao ritmo de rimas que nunca decepcionam pela previsibilidade. Eis mais um exemplo
em que criação poética e estória se confundem. Característica comum a todas os
textos é o aberrante, o bizarro e a anormalidade enquanto matrizes literárias, aberrações
que tanto podem dissimular como hiperbolizar as dimensões absurdas do afecto.
Em muitas destas estórias é o amor que está em causa, o amor entoado pela
desmesura da paixão, o amor a um filho ilegítimo ou anormal, o amor no seio
familiar. Mas este amor acaba frequentemente minado pela inclusão de elementos extraordinários,
como é o caso do pobre bebé ostra: com dez dedos nos pés e nas mãos e cabeça de
ostra. Não vale a pena tecer considerações psicanalíticas sobre estas
personagens, embora não seja displicente chamar atenção para o facto de todas elas nos enviarem
para uma infância matizada pelo imaginário gótico da bruxaria. Temos os rapazes
ostra, nódoa, robô, pesticida e torresmo, as raparigas vodu, lixo, com olhos
fora de série e com muitos olhos, entre outros dignos representantes duma
memória infantil fundada no espírito Halloween. Exemplo assaz curioso é, também
pelo que tem de humorístico, o de Judite: «Para evitar uma
queixa-crime, / chamemos-lhe apenas Judite / (ou “a rapariga que snifa cola / e
que tem sinusite”). // Ora isso não a faz feliz: / é que quando se assoa / fica
com o kleenex colado ao nariz». Devo porém alertar-vos, minhas filhas, para os
perigos em que incorreis ao buscardes divertimento nestas bizarrias. Quem leve
a vida demasiado a sério dificilmente encontrará aqui motivo de divertimento, obstáculo
que, espero, não seja o vosso. Como sabeis, do riso motivado pela insensatez
colhemos o ensinamento da verdade. Por mais que sejam os filtros com que
tentamos disfarçar o hediondo, a deformação e o desfigurado, o bizarro e
anómalo, por mais que sejam os filtros, repito, a verdade revelar-se-á tal qual é: inesperada e inconveniente como um corpo esventrado. Por debaixo da maquilhagem há sempre um esqueleto à espreita.
Cabeça
de Melancia
Era
uma vez um cabeça de melancia
que
todo o dia se sentava absorto
desejando
estar morto.
Mas
com as coisas que desejamos
precisamos
ter cautela.
O
último som que ele ouviu
foi
o de uma esborrachadela.
Sem comentários:
Enviar um comentário