sexta-feira, 18 de abril de 2008

CINCO

Hoje vou chover para outro lado. Levo comigo a aura dos teus olhos, o sorriso ingénuo com que nos brindas todas as manhãs, a doçura dos gestos mais ternos que pode um homem almejar. Hoje não irei chover sobre a nossa terra, porque é de luz a nossa terra sempre que tu ris. Danço e canto melodias antigas, danço e canto melodias novas, danço ao ritmo frenético das tuas dúvidas, canto a ansiedade das tuas respostas. Não pode haver cansaço nessas perguntas, não pode haver mágoa. Sempre que madruga olho-te pelo retrovisor. Não me vês olhar-te, nem sabes que os meus olhos estão ali, deliciados, com a pureza da tua melancolia. Como pode uma criança trazer no rosto alguma melancolia? Como pode olhar a paisagem em movimento, o movimento em paisagem, sem se interrogar? Não pode. Por isso saltas da melancolia, lenta, com aquela moleza sofrida de todas as manhãs, e esperas acordada um sonho vindouro, enquanto apontas na parede os desenhos, as construções, os adereços com que vais aprendendo a dar cor à vida. Tudo me ensinaste, tudo te devo. Ensinaste-me a falar de outro modo, a escrever de outra fala, a olhar o mundo com um espanto que julgava perdido no quotidiano bafiento das pessoas adultas. Ensinaste-me que tudo é anterior às teorias e que as teorias são anteriores às palavras, que as palavras são anteriores a si mesmas: nos gestos desregrados, espontâneos e inusitados com que brindas a existência. Eu hoje vou chover para o lado amistoso do vento. Vou tracejar a verde o coração oferecido, colar na porta do frigorífico mais um sinal de esperança, escutar atentamente as tuas dores, a minha ausência, esta tristeza de não poder estar sempre onde nos manda o coração.

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