quinta-feira, 9 de outubro de 2008

CLAVE DO MUNDO

A urgência é inimiga do saber. O ócio permite-nos reflectir, ajuda-nos a perceber melhor o que a pressão do imediatismo lança para planos secundários. Vivemos num tempo escravo da novidade, novidades essas que asfixiam, sufocam, obnubilam tudo o que escape à novíssima etiqueta. E, no entanto, o novo pode por vezes parecer velho e o velho tem, muitas vezes, o sabor da novidade que transcende as fronteiras do tempo. Mas dentro deste nosso tempo reina o “império do efémero”. As modas ditam os discursos, os discursos reproduzem as modas, tudo numa aceleração que deixa na penumbra a qualidade, aposta na quantidade e imprime a palavra com uma fugacidade estonteante. Hugo Milhanas Machado (n. 1984) é um poeta novo. Não anda nisto há meia dúzia de meses, pelo que terá de sofrer já a perda do estatuto de novíssimo. Estreou-se em 2005 com Poema em forma de nuvem, ao qual se seguiram Masquerade (2006) e este Clave do Mundo (Sombra do Amor, Novembro de 2007). Ganhou alguns prémios literários, prepara uma tese de doutoramento sobre Ruy Belo na Facultad de Filología da Universidad de Salamanca, tem no prelo mais dois livros: Mas que hei-de, a sair pela recentemente ressuscitada Mariposa Azual, e As Montanhas Mágicas, com o qual venceu o Prémio Literário José Luís Peixoto. Eis uma outra característica curiosa do nosso tempo: os novos já podem ser patronos de prémios literários. Esperemos que em breve possam os prémios ter também como patronos alguns novíssimos. Até lá, iremos investir algum do nosso precioso tempo na Clave do Mundo. Porque o tempo, como sabeis, é precioso. E a arte deve respeitar, antes de mais, o tempo que se perde com ela. Não dou o tempo por perdido. A Clave do Mundo é um livro lento, como a paisagem que aparece na capa. Não é de leitura fácil, exige-nos uma predisposição que passa, sobretudo, por um investimento nos ritmos elípticos que caracterizam estes poemas. Epígrafes respigadas em letras de canções, à mistura com poetas consagrados tais como Cesariny ou Ruy Belo, não disfarçam a complexidade desta poesia. Começa a colectânea com um longo poema intitulado O Metrómano do Mundo. Lembra-nos uma peça de jazz, um riff a marcar o andamento entre vários improvisos. É um poema de amor que nos envia, mais ou menos voluntariamente, para Daniel Filipe (“a invenção do amor”), Natália Correia (“a defesa do poeta”), Hugo Von Hofmannsthal (“a carta de Lord Chandos”), entre outros. Mas fá-lo de modo tão disfarçado que chega a ser pretensioso denunciá-lo. As palavras dançam neste longo poema, as referências parecem aparecer de um modo automático, de um impulso solista arrancado às memórias esparsas de uma situação concreta. Segue-se um conjunto intitulado 9 Milhões de Bicicletas, tão Poucas Bicicletas (paráfrase de Katie Melua). Poemas curtos, marcados pelo movimento da repetição, novamente o amor disfarçado numa ironia elíptica, talvez um pouco envergonhada, como se cada palavra fosse uma nota musical. O poema Win e Régine (Win Butler e Régine Chassagne dos Arcade Fire) é descritivo sem o ser, é um poema sábio porque sabe adulterar, num acto poeticamente terrorista, as fórmulas simplistas da maioria dos poetas de hoje em dia. Já agora, um pouco do poema justamente intitulado Os Poetas Hoje em Dia: «Coisas tão pequenas como esta, / não a vês, é um ritmo lento e preciso / e tão hábil na evidência dos dias» (p. 59). Mais um longo poema intitulado Mas Que Hei-de. Se há algo que ressalta à vista nesta colectânea é o esforço de organização, a distribuição coerente dos poemas. Menos evidente é a obsessão com o corpo, com certos elementos do corpo. Neste caso, a mão enuncia uma distância, a musicalidade de imagens vivas, Capitu, a personagem de Machado de Assis, representando o peso da memória de um beijo reduzido a uma palavra, uma imagem inesquecível. Imagem, símbolo, nome, música, gesto, sugestão, fundem-se no poema como se este fosse um espelho que reflecte os objectos usurpando-lhes a materialidade, o corpo. Dando-lhes, talvez, um novo corpo. Fado, Murais, Hip-Hop reúne mais alguns poemas de menor fôlego. Uma congruente homenagem a Fiama abre um conjunto que termina com um poema que pode ser lido como se fosse uma arte poética eivada de ironia: «Desacredito das grandes coisas da vida / o amor deus a mesa posta algum / grito se a mesa vazia dia sobre dia / e até a morte a morte / coisa nobre com que o corpo não perde aposta / se a mesa vazia dia sobre dia / e noite cada noite a mesa vazia / a morte coisa nobre não é mais morte / andam a fazer da morte amparo da vida / e eu poeta que desacredito ora das grandes coisas da vida / e o amor onde o deixei? / se a mesa vazia e ninguém vem» (p. 91). Restam três pequenos conjuntos: Uma Imagem que Existia, Fatrimónio, Cantata. Poemas impressionistas e impressionantes, retratos manipulados de situações diversas, referências a locais concretos, a canções, poemas que foram também “consequência do lugar” mas que souberam, ou pelo menos tentaram, descolarem-se dos lugares. Como se fossem assobios. Lugares marítimos, aqueles que nos mergulham tanto no silêncio como nas tempestades, lugares de náufragos que arriscam a construção de barcos novos. E nesses barcos navegam. Que os especialistas das marés não dêem por eles, é apenas coisa que acontece.

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