sexta-feira, 8 de junho de 2012

COSMOPOLIS


Reparei em duas raparigas sentadas numa das mesas do Rolhas e Rótulos, um winebar no centro histórico de Guimarães onde estive a degustar uma tábua de enchidos na companhia de um Eugénio de Almeida. Estavam sentadas com os respectivos laptops sobre a mesa, página do Facebook aberta e bocas cerradas que nem túmulos. Não trocaram uma palavra enquanto as olhei. De vez em quando, esboçavam um esgar que permitia perceber-lhes a vivacidade. Mas faziam-no sempre com os olhos apontados para o monitor. O mundo delas já não era apenas o meu mundo, era uma extensão inorgânica da vida material. É possível que consultassem a página uma da outra, partilhando vídeos, artigos, fotografias, curtindo descobertas individuais sem necessidade de conversa, dando comida às galinhas numa horta virtual, limitando-se apenas a manifestar um sentido de gosto com raízes na superfície das coisas. Afinal, não é o que fazem hoje as pessoas normais? Corrijo, não é o que faz hoje as pessoas sentirem-se normais? Curiosamente, uma das raparigas tinha um aspecto algo vanguardista, nada vulgar, o que me remeteu para o mais recente filme de David Cronenberg. Não posso dizer que me tenha comovido com Cosmopolis. Provavelmente não era intenção do filme comover um português saloio, embora o livro me tenha suscitado várias questões onde a racionalidade da interpretação procura aconchego nas emoções produzidas pelo texto. Há algo de emocional na história de um jovem multimilionário que não consegue foder a sua jovem mulher, só quer cortar o cabelo no barbeiro da infância e vem a descobrir que a solução para os seus problemas reside no seu próprio cu. Ou quase. A descoberta de uma próstata assimétrica pode ser reveladora, se nela quisermos ver uma espécie de oráculo sobre a natureza instável do mundo. Ou seja, nem tudo encaixa nas fórmulas e nos padrões com que avaliamos a realidade porque para lá da regularidade que o raciocínio consegue prever, por vezes com espantosa exactidão, há o acaso, os acidentes, as contingências, o erro, o caos. Repare-se como deixámos de nos comover com o tempo porque aprendemos a controlá-lo. Este domínio sobre a realidade, ou pelo menos a presunção desse domínio, rouba-nos o sentido enquanto ocupamos os sentidos com as novas fórmulas de extensão do mundo. A Internet introduziu isso nas nossas vidas com estranha resolução, ela já não serve apenas para partilharmos representações da existência. Ela serve para que nós próprios existamos. Não se trata da velha dicotomia entre artificial e autêntico. Hoje em dia, a artificialidade pode ser tão autêntica que causa guerras, provoca mortes, alimenta o luxo de uns poucos e a miséria da maioria. A especulação financeira é o exemplo mais paradigmático desta “nova realidade”. Inventámos exaustivos modelos de análise do tempo, gerimos o mundo no pressuposto de que não somos parte integrante desse mundo. Situamo-nos, o mais possível, nos não lugares da virtualidade. Talvez doam menos. Até que um dia acordamos para os apetites, somos levados pela paixão, apetece-nos ir ao barbeiro da infância e torna-se difícil manter a rota, queremos foder a nossa mulher e somos traídos pela poesia. Acabamos a disparar sobre nós próprios para nos certificarmos de que ainda estamos vivos, de que ainda somos gente, para aprendermos com a dor o significado de se estar vivo. No fundo só queremos ter a certeza de um corpo, confirmar se não nos teremos metamorfoseado numa versão actualizada e aperfeiçoada de um holograma hiper-hiper-realista. Para então podermos concluir:


Não consigo sentir o teu corpo quando primo a tecla C.

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