Escrever sobre um livro de Miguel-Manso (1979) é correr o risco de ser capturado pelas armadilhas espalhadas nos seus livros, na medida em que é o próprio poeta – chamemos-lhe poeta para evitarmos outras designações talvez mais pomposas, como rapaz que escreve ou ser escrevente – quem manifesta um certo desprendimento, para não dizer desprezo, relativamente a este repisar que é, sem dúvida, o exercício da leitura impressionista: «Quando sobre um jovem autor se redigem excessivas loas ao resultado dos seus primeiros trabalhos o provável é crescerem nele, mais tarde, graves disfunções orgânicas de origem acumulativa. Para evitar certas patologias e combater o inchaço patológico (tumefacção) é necessário usar-se sem atrasos lancetas de sangria. A punção resultará, a breve trecho, do modo seguinte: desinflama, descongestiona, desintoxica, tranquiliza, neutraliza o ilustre mas silenciado Síndrome do Pânico, transversal à classe. É então indispensável que sobre esse autor caiam já as piores desonras e agravos, venham eles do blá-blá-blá autorizado, ou da sarjeta de comentários de um blogue» (p. 32, Um Lugar a Menos). Apesar das humilíssimas edições de autor, publicadas sob o título genérico de Os Carimbos de Gent, Miguel-Manso não se furta, porém, à entrevista, à fotografia para o jornal, à aparição televisiva ou radiofónica. Estamos perante um paradoxal caso do culto do não-culto, estupenda herança da sociedade do espectáculo tal como a entenderam os situacionistas ao mesmo tempo que nela se penduravam. É hoje difícil escapar, mesmo que em nichos de atenção mediática, às teias que a comunicação tece. E Manso(-Miguel) não escapa, por muito que isso lhe inspire poemas em sentido contrário. Sucede que, neste caso, a qualidade da matéria produzida justifica as atenções. Dois livros em 2012 vêm renovar o entusiasmo colocado sobre uma escrita cujo maior defeito é, sem culpa disso, gerar expectativas no leitor. É certo que Ensinar o Caminho ao Diabo (Março de 2012) é uma recolha de poemas em verso que não faz justiça às anteriores, mas os poemas em prosa (porquê evitar tal conceito optando por chamar-lhes aforismos?) de Um Lugar a Menos (idem) são, no seu conjunto, do melhor que a poesia portuguesa pariu nos últimos anos. O mais curioso, pelo menos para mim, é que aquilo que nos versos do primeiro livro resulta redundante, nas prosas do segundo consegue uma intensidade espantosa. E o que é aquilo? É uma necessidade auto-reflexiva sobre o lugar do poeta no mundo, o lugar da poesia no poeta, o lugar do poeta no poeta, o lugar da poesia na poesia, em suma, e por absurdo, o lugar do lugar. Desde o primeiro livro que Miguel-Manso se revela um poeta do espaço. Os seus poemas estão repletos de referências geográficas, são consequência do lugar. Repare-se como os títulos Ensinar o Caminho ao Diabo e Um Lugar a Menos remetem, cada qual à sua maneira, para essa noção de espaço, seja pelo movimento que nele se opera, seja pela violação de que é alvo. Nos poemas de Ensinar o Caminho ao Diabo, agrupados em dois conjuntos com nome de movimento na matemática do xadrez (Grande Roque, Pequeno Roque), somos levados a passear pelas Grutas de Mira de Aire, Lisboa, São Paulo, Londres, Veneza, Cabo Verde, Índia (mais imaginária que real), Los Angeles e, por razões evidentes, Porto e Évora (grande parte dos poemas resultaram da participação do autor em residências de criação nessas cidades). Às referências geográficas juntam-se referências literárias (Pasolini, Cioran, Sá-Carneiro, Sá de Miranda, Llansol, etc.) e musicais (Tom Waits, Cohen, João Gilberto, Sei Miguel, Gaiteiros de Lisboa, Bob Dylan, Fausto, entre outros). É deste emaranhado referencial que os poemas resultam, numa produção que somos levados a crer ter tanto de diarística como de ecfrásica (palavrões que, reconhecemos, nada dizem e pouco acrescentam). Sucede que há tiques irritantes nestes poemas que se repetem mais do que seria desejável, como a tendência para o trocadilho fácil («emudecida detonação que alimenta ainda / esta pena (tenho tanta)»), para a aliteração forçada («ideio a ideia», «bárbaro, barbado», «estrófico e catastrófico», «do acto / e do facto»), para o jogo de significados que a língua sugere e ao qual o poeta não resiste. A poesia torna-se demasiadas vezes objecto de si própria, o fazer do poema, o motivo para o poema, a construção do poema, quando, na realidade, o poema resulta mais cativante quando se liberta da poesia e nos oferece as paisagens dentro das quais o poeta deambula. Até porque Miguel-Manso é um exímio observador, não havendo necessidade nenhuma da (anti)pose que muitos poemas (ou parte deles) denuncia. Há um poema onde, pela adjectivação excessiva, se torna deveras... chato... isso a que aqui chamamos (anti)pose. É o poema Apanhado em Fragrante, cujo título é já de si um trocadilho dispensável. Veja-se agora a adjectivação: «melancólica bicicleta», «frios provinciais», «incalculável prejuízo dos versos», «laranjeiras flóreas», «imperceptível alegria», «fiada odorífera», «lumaréu de limoeiros, «caiados muros», «imaturo homem»… Tudo no mesmo poema, tal doce enjoativo. Ora, não são apenas os arcaísmos nem as anástrofes nem os hipérbatos nem o tom classicista que, ainda que numa toada lúdica, prejudicam os poemas. É a enfatuação do discurso. Esta desaparece no livro Um Lugar a Menos, colheita que tem na sua origem já não a “clausura” das residências, mas a alforria da exposição. O que há de mais cativante nestes poemas em prosa é a relação que mantêm com o espaço, ora descrevendo-o, ora desmontando-o, ora arrastando o leitor por viagens físicas e imaginárias (metafísicas?), reflexivas e memoráveis. O uso das expressões latinas alvitra uma viagem dissimulada às origens, num jogo permanente de insinuações que está longe de se esgotar no carácter meramente lúdico de alguns versos do livro anterior. Não que aqui essa inclinação esteja ausente, apenas se revela muito mais capaz de provocar no leitor a ansiedade do pensamento, inquietando, desassossegando, obrigando-o a uma espécie de expedição (peregrinação, no sentido que lhe dava Jorge de Sena) pelos terrenos agrestes da linguagem. Nestes textos, o autor coloca-se numa posição introspectiva. É algo de novo, ou pelo menos extra-ordinário, na sua poesia. Se nos poemas em verso é muito mais cativante quando descreve a “paisagem”, nestas prosas a dimensão reflexiva de Miguel-Manso adquire um sentido inusitado. É elíptico e irónico sem ser previsível, torna o sentido dos seus textos mais complexo porque a relação entre eles e a realidade deixa de ser evidente. Dialoga nas entrelinhas com outros autores (Pessanha, Rui Knopfli, Barnett Newman, Hiram Bingham - fui ver ao Google - Walt Whitman...), numa direcção interpelativa que já não é apenas a do trocadilho fácil, é a de uma busca permanente, é a da dúvida e do espanto. E logra textos com uma profundidade ontológica rara entre os da sua geração. Exemplo:
No jornal: mulher esteve nove anos morta em casa. passou quase uma década entre o momento íntimo dessa morte e o maior ou menor espavento civil (e/ou religioso) que a autorizou. A morte, que acontece sempre aos outros, precisa, idealmente, da exibição do seu resíduo: o corpo consumado. Ou então de um vestígio, notícia, um boato que seja. se ninguém acolheu a morte dessa mulher, então ela só morreu (tornou a existir) de facto, no dia em que a encontraram no chão do seu apartamento. Mais do que uma utopia, ou um hiato (uma hiatopia) o lugar e o tempo onde e em que ela desexistiu (apurados e admitidos postumamente) têm a dimensão do mito. E eis que o vocábulo apartamento atingiu ali a sua literalidade. Mas de nada, para nada, por nada e em tempo nenhum
1 comentário:
Miguel-Manso sabe muito bem o que anda a fazer. e concordo, na generalidade, com o que dizes
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