quinta-feira, 13 de março de 2014

A SALADA COM MOLHO COR-DE-ROSA


1
Conheci a Magda na praia
na praia é uma metáfora obscena
que como as outras metáforas obscenas
pode ser usada quer como eufemismo
quer como insulto
conheço por experiência própria
os dois usos da expressão
na praia

2
Eu gosto de me fazer passar
por uma rapariga ordinária
a Magda era mesmo ordinária
a princípio era isto o que mais
me atraía nela depois foi isto
o que sobretudo me desgostou dela

3
As minhas relações com a Magda
de deliciosas passaram a promíscuas
aconteceu-me
o que me tinha acontecido
quando comi salada com molho cor-de-rosa
ao princípio
a salada era deliciosa por causa do molho
depois comecei a perceber
que era mil vezes melhor
estar a comer os vegetais
sem molho do que com molho
o molho impedia-me de comer os vegetais
com gosto
desgostava-me da vida

4
Vivia com a Magda
num quarto de duas camas
quando eu chegava ao quarto
a Magda estava deitada na minha cama
numa posição de Maja desnuda
mas vestida
o que ainda era pior
outras vezes encontrava-a
sentada na minha cadeira
a folhear os meus livros
e a chupar os dedos

5
A Magda era uma intrusa
depois de ter sido um ser envoûtant
quer como intrusa
quer como ser envoûtant
ela era para mim
uma fonte de perturbação

6
Eu não era casta
não porque me entregasse
com a Magda
(que era aliás uma praticante profissional do safismo)
a um prazer que alguns dizem vicioso
(só lhe toquei uma vez
sem querer
e pedi-lhe automaticamente desculpa)
mas porque com a Magda
não tinha prazer nenhum

7
(Acho que o prazer é casto
o que não é casto
é o simulacro do prazer
ou a renúnica ao prazer
tanto o simulacro
como a renúncia)

8
Um dia voltei ao quarto
e a Magda tinha desaparecido
sem deixar marcas
custou-me não encontrar
o chiqueiro próprio da Magda
os meus cigarros fumados
o meu cinzeiro cheio de beatas
sujas de bâton
(que me faziam lembrar
dentes cuspidos após uma briga)
o Las Moradas
antes do Calculus I
na minha estante
quando eu me habituei
a pôr esses livros por ordem inversa

9
O que me custou
foi tudo ter acabado
como tinha começado
como se nada se tivesse passado
durante
ora o que se passou durante
ainda hoje me incomoda
e portanto deve ter acontecido

Adília Lopes (n. 1960), in Um Jogo Bastante Perigoso (1985). «Num certo sentido, os poemas de Adília Lopes são completos. Não nascem como fragmentos para serem todos destacados, separados, circunscritos pelo que falta. Em geral, não comportam ainda nem objectos nem símbolos dados à contemplação estética. Alguma coisa lhes consente a concisão - o humor? -, enquanto outros, por contraste, buscam "sentido" e "sentimento" com uma linguagem que constrói, que se especializa, e que, por isso mesmo, e não exceptuando os poetas mais enxutos e que praticam a vigilância sobre a forma, não escapa ao juízo que lhe divisa alguma prolixidade - uma vez que, face à profundidade do "objecto", a linguagem seria sempre redundante. (...) Toda a obra de Adília se dirige contra a suficiência estética, resumível na forma "eu"; todo o cómico, todo o absurdo, toda a incongruência (e alguns traços inegavelmente "idiotas") se dirigem contra isso que na poesia, na arte e na vida é incondicional "publicidade em favor da existência"» (Américo António Lindeza Diogo, in posfácio a Obra, Mariposa Azual, Dezembro de 2000).

2 comentários:

José D. disse...

Adília, digam à Adíla, a única verdadeira Lopes, que quem a alguma vez a conheceu só a esquecerá por motivo de forca maior. Força, queria eu dizer. Pois não foi ela quem disse - "AMOR - Aquele que o procura e ainda não voltou/ ou ainda o procura ou já o encontrou"?

hmbf disse...

Alguém que lhe faça chegar o testemunho.... :)