Ainda não
não há dinheiro para partir de vez
não há espaço de mais para ficar
ainda não se pode abrir uma veia
e morrer antes de alguém chegar
ainda não há uma flor na boca
para os poetas que estão aqui de passagem
e outra escarlate na alma
para os postos à margem
ainda não há nada no pulmão direito
ainda não se respira como devia ser
ainda não é por isso que choramos às vezes
e que outras somos heróis da valer
ainda não é a pátria que é uma maçada
nem estar deste lado que custa a cabeça
ainda não há uma escada e outra escada depois
para descer à frente de quem quer que desça
ainda não há camas só para pesadelos
ainda não se ama só no chão
ainda não há uma granada
ainda não há um coração
António José Forte (n. 1931 - m. 1988), in 40 Noites de Insónia de Fogo de Dentes Numa Girândola Implacável e Outros Poemas (1960). «A poesia de António José Forte não é um lugar-comum surrealista, como alguma da por cá exercida entre o fim da década de 50 e o começo da seguinte, e também da muita que se eserce agora sub-repticiamente. (...) A voz de Forte não é plural, não é directa ou sinuosamente derivada, não é devedora. Como toda a poesia, a verdadeira, possui apenas a sua tradição, no caso a tradição romântica no menos estrito e mais expansivo e qualificado registo, uma tradição próximo de nós esclarecida pelo surrealismo, imemorial, dinâmica, abrindo para trás e para diante, única maneira de entender-se uma tradição. Não se trata de modo ou moda, forma ou fórmula, acidentalidade ou incidentalidade. O teor é o da inteligência fundamental do mundo» (Herberto Helder, in Nota Inútil - prefácio a Uma Faca nos Dentes, Parceria A. M. Pereira, 2ª edição, 2003)
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