No restaurante, o rapaz exibe
os músculos trabalhados na T-shirt
de marca colada ao tronco. Faz-se
acompanhar de duas mulheres,
uma loura de aldeia, outra morena
de raça cigana. Conseguem acabar
a refeição. Depois
do brandy e do café, a loira
palita os dentes descontraidamente.
Esqueceu-se por completo. O proxeneta
não diz nada. Poderia educá-la
mas, na verdade, a proveniência
é a mesma.
Na escola os miúdos calculam
na máquina, as armas nucleares
guardam-se numa caixa com um cadeado,
disse-me Tofler.
Civilização e barbárie são dois partidos.
O ódio, a rivalidade estão na origem
da tragédia. Imprevisíveis as consequências
das lutas tribais em todos
os cantos do planeta. É o Nobel
da Paz, disto e daquilo. Nada resolve
o drama de existir. O anonimato
é hoje infelicidade. Toda a gente quer
direito de antena, um segundo,
a palavra, um dialecto qualquer.
Envelhecer não dá a chave
da resolução dos problemas.
Livros são lixo, não produzem
alimentos nem antibióticos
para os milhões que diariamente
todos os canais mostram ao mundo.
A paixão eleva, ajuda
e apaga a imperfeição.
Aprendemos a perdoar já tarde
na vida, não há receitas.
Mesmo sem importância é preciso
continuar. Aconteça a discórdia,
a guerra, o extermínio.
A rua é um circo; a beleza
do coração que bate regularmente,
a crueldade dos mutilados de toda
a espécie. Um rosto de criança
amolgada encosta-se à montra
da ourivesaria. O velho corcunda
vende cautelas e também é pedinte.
Tal como o professor que lecciona
no oficial e no particular. Os filhos
precisam de um nível de vida capaz
de superar a competição.
Figuras distintas na corrupção,
tudo se descobre e o comum
cidadão tem sede de vingança.
A escravatura nunca acabará. Raros
conhecem a plenitude do conforto.
Mármores, cristais, jóias,
estonteantes maços de notas.
O sofrimento mortifica e o suicídio
é a admirável fuga ao asilo,
ao lar da idade final.
Pensar em tudo esgota
os nervos, tomar comprimidos
adia o assunto. Melhor será
ficar pelo ensaio geral duma vida
sem horizontes. Cinzenta, mediana,
sem rebuliço. Não sentir nem desejar,
ser feito de pedra.
Isabel de Sá (n. 1951), in Erosão de sentimentos (1997). «Falemos de uma poetisa que publicou o seu primeiro livro em 1979, que conta hoje com 12 títulos na sua bibliografia activa e que não costuma ter lugar cativo em antologias, balanços, retrospectivas e sínteses. Chama-se Isabel de Sá e reuniu a sua obra num único volume que dá pelo seguinte título: Repetir o Poema. / É um título que vale como um programa: o poema como lugar de uma insistência, de uma obsessão, de um sempre igual que ao repetir-se torna-se outro. A característica mais evidente desta poesia é a criação de um universo fechado no seu complexo de símbolos e imagens: ela define-se, antes de mais, por um determinado imaginário, isto é, por um conjunto de imagens que formam um arquivo pessoal, um léxico e um discurso não partilháveis. Podemos tentar defini-lo: trata-se de um imaginário que estabelece trânsitos inesperados entre o corpo erótico (o corpo do amor) e o corpo mortificado. Dir-se-ia que no princípio está a morte, e é a ela que se conquistam pedaços de vida. Daí que nos primeiros livros de Isabel de Sá a infância tenha sempre uma conotação fúnebre» (António Guerreiro, O rosto e as máscaras, Expresso, 17 de Setembro de 2005). Imagem respigada aqui.
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