Faço um poema e nasce uma cidade
invento o conteúdo geográfico das coisas.
Escrevo um nome e nasce Dublin
porque Dublin escrevi.
Se onde ponho um traço nasce uma via de ferro
então é um comboio em direcção a Roma.
Faço uma cidade e vejo-me um néon
ponho um anúncio e nasce cigaretta.
O italiano compõe o soar da palavra
eu dou uma entoação ao segredo do fim
Se há um horizonte para divulgar o Sol
há uma expectação para divulgar o coração
Se há um moinho para os lados de Perpignan
há Daudet a repousar o Sol numa cadeira
Se há Avignon, uma festa, a França, a Península Itálica,
Burgos e todas as catedrais espanholas
há uma cidade cheia de Sol a compor a direcção
Se o mar fica no fim
Lisboa fica ao pé de Lisboa fica súbito
como se o Tejo fosse um braço decepado
e um cacilheiro total o pano de uma bandeira
Pensa-se no rumor tribal que inunda todas as ruas
faz-se um boulevard duma avenida nossa
põe-se Lautréamont a inventar um prédio.
Há a loucura a inundar a parede
o relógio que
se primeiro bateu na cabeça de Poe
bate depois no sangue feito do conto
divulgado no livro
Lê-se o fígado do poeta no álcool derramado
sobre o desmaio de Ligeia
se esta tem as mãos ebúrneas nasce âmbar
nas mãos brancas duma conceição tripartida.
Ah, se onde ponho a imaginação nasce um lírio
derramem-me a história duma amante sobre a cabeça
pois sou o amante duma perversão absoluta.
Não rasgues o sentido do ombro aí onde tens o tatu do destino
e aí onde só a virgindade do teu androceu malino
pode factar a dimensão do totem a inundar de carácter
todo o céu africano.
Ah, nasça-me um árabe de luz com seu corpo moreno
contradizendo a logia
nasça-lhe uma idade de rosto sua idade gidiana
para compor a tenda com precaução indefinida.
Reveja-se o jeep inglês de Lawrence
que inundava o deserto duma celtidade absoluta,
o zénite solar sobre o bico da tenda.
Só a imagem dum rio pode dar ao poema
toda esta noção geográfica que o poema não tem.
Bramaputra
se nasceres no papel vou dizer à ondina do gnomo
que a floresta não constrói.
Ponho uma fonte a cantar na cabeça do gnomo
e o gnomo surge e nasce
como o ícone divulgado.
É rica a mitologia germana
para dar um sentido ao godo que de chifres na cabeça
usa um segredo quotidiano pendular
que é o pulso esquerdo da fêmea.
Põe-se-lhe a data
e o poema nasce
rubicundo
como a ponta dum lápis
que escrevesse no registo
o nome macho dum bebé.
I achieve
I finalize
eu acabo
eu finalizo.
É o poema terminado.
António Gancho (n. 1940 - m. 2005), in O Ar da Manhã - 1960/1967 (1995). Poeta louco, eis o estigma que sobre a obra pesa. Herberto
Helder deu-o a conhecer em Edoi Lelia Doura – Antologia das vozes comunicantes
da poesia moderna portuguesa (1985). Gancho, então com 45 anos, percorria desde
os 20 os corredores das instituições psiquiátricas. Foram 38 anos de
internamento na Casa de Saúde do Telhal. Lugar obscuro onde se cruzam inúmeras
referências, porventura de modo aleatório, a poesia de António Gancho inquieta quem seja sensível aos mistérios
da linguagem, repercutindo uma desorientação que o electrochoque da hermenêutica
convencional é incapaz de arrumar. No entanto, há n’O Ar da Manhã uma
cosmologia latente onde podemos entrever muita da melhor habilidade surrealista.
Além de Herberto, foram seus amigos Álvaro Lapa e António Palolo. Frequentou o
Café Gelo, ponto de confluência do último surrealismo português. Poemas
temperados com as especiarias dessa convivência, quer pelas referências que ressoam,
quer pelos coloridos irónico e, por vezes, histriónico que manifestam. São
versos onde cada palavra aposta isoladamente o seu sentido, o seu significado e
o seu significante, numa relação lúdica e livre entre imagem e som.
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