segunda-feira, 24 de março de 2014

JOSÉ MORENO VILLA

A Geração de 27 diz respeito a um conjunto de poetas espanhóis que começaram a publicar nesse ano (ou perto). Designação algo abusiva, pois comporta vozes dissonantes de formações distintas, sem padrão nem raiz comum, apenas com uma muito ténue ligação entre si. Os nomes mais conhecidos serão Federico García Lorca (n. 1898 – m. 1936) – estreado seis anos antes -, Rafael Alberti (n. 1902 – m. 1999) – Prémio Nacional de Poesía em 1925 -, Jorge Guillén (n. 1893 – m. 1984) – que começou a publicar poesia na influente Revista de Occidente – ou Luis Cernuda (n. 1902 – m. 1963) – este, de facto, com estreia em 1927. No entanto, descobrimos nas biografias destes poetas a frequência de um espaço comum que virá a revelar-se determinante. Todos frequentaram a Residencia de Estudiantes, centro de estudos em Madrid para onde confluía grande parte da cultura literária espanhola de então. Entre os frequentadores, está também um poeta não tão conhecido como os supramencionados mas com uma obra verdadeiramente estimulante. José Moreno Villa (n. 1887 – m. 1955) começou a publicar em 1913. A sua poesia é uma espécie de ponte entre a Geração de 27 e a geração anterior, a de poetas como Miguel de Unamuno (n. 1864 – m. 1936) e Antonio Machado (n. 1875 – m. 1939). Octavio Paz, Ortega y Gasset, Juan Ramón Jiménez, referiram-se à sua obra em tom elogioso, sendo certo que a mesma desbravou caminho para o desenvolvimento das vanguardas espanholas. Bibliotecário de profissão, ligado à Residencia, foi uma espécie de tutor dos jovens Buñuel, Lorca, Dalí. Escreveu contos, teatro, ensaio, crítica literária e de arte, traduziu, colaborou com jornais e revistas, fazendo eco de um sentido transgressor de que a poesia é manifesto irrefutável. Além da autobiografia Vida en claro (1944), o seu livro mais conhecido é Jacinta la pelirroja (1929) – expressão magoada de um amor falhado por uma jovem americana de nome Florence que o levou a viajar até Nova Iorque, lutando ingloriamente contra a oposição dos pais da amada. No prólogo à edição desta singela antologia intitulada Poemas (Junta de Andalucía, Abril de 2012), Rafael de Cózar afirma que o livro marca «el punto culminante de la Generación del 27, la cual, a partir de los inícios de la República y con el referente de la crisis mundial del 29, evoluciona, incluso desde las posiciones vanguardistas, hacia la rehumanización» (p. 12). Identificado com a esquerda republicana, José Moreno Villa viu-se forçado ao exílio mexicano em 1937. Um ano antes tinha publicado Salón sin Muros (1936), de que deixarei a seguir uma versão do poema Sobre tus memorias. Já da fase do exílio, deixo o poema Epílogo – do livro La Noche del Verbo (1942).

SOBRE AS TUAS MEMÓRIAS

Se alguma vez escreveres as tuas memórias
diz que andavas de chinelos por casa,
que ressonavas a dormir,
ou que sofrias de hemorróidas.
Diz se tiveste amores clandestinos
com familiares ou mulheres de classe baixa,
se frequentavas tabernas ou igrejas,
se eras amigo dos grandes fantoches.
Nada digas das tuas obras,
porque, se disseres, roubas  ao crítico
o pequeno fruto da presunção.
Ele diverte-se e justifica
manipulando com o “talvez”, o “porventura”
ou o “supostamente”.
O melhor é contar anedotas,
exibir a roupa interior,
dar os pormenores da tua concubina
e oferecer o deve e o haver do teu calendário.

***

EPÍLOGO

Verbo, verbo e não mais, apenas palavras.
Isso sou, isso és, isso somos
dentro da janela.
Por isso quando olhas o teu interior
nada vês de tangível;
nem luz nem corpo, nem cor nem ar;
um enorme vácuo
onde ferve a vida do vocábulo;
onde ferve a vida.
A vida é o vocábulo
e ser homem consiste
em unir sabiamente as palavras
e destacar as que cavalgam
sobre o mundo exterior e o intramundo.
O verbo está no topo;
é senhor e criança.
A mais próxima das suas imagens é o poeta.

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