Deixem-me só no mar, não aluguem o bote:
Medi o salto e o mundo antes de me atirar.
Assim, não há ninguém que me derrote:
Afogado ou flutuante, hei-de chegar.
Plo amor de Deus, não me deitem a mão!
Já pus sal na garganta para a morte:
Quem se sabe salgar não erra o Norte.
Tem consigo o destino e a duração.
Calem lá a sereia dos nevoeiros,
Que eu palpo a noite, sinto vagas dentro
E movo-me nos ventos verdadeiros
E conheço as funduras, se lá entro.
Apaguem os faróis pla costa fora,
Cortem todos os cabos, à cautela,
Que eu não sou nada: aceito a minha hora,
Encho-a como o navio a sua vela.
E vou, lavado em mar e enxuto em ossos
Buscar a minha estrela aos céus de Oeste:
De tanta água, levo os olhos grossos;
A tristeza de ser a alma me veste.
Nunca fui senão mar numa coisa peluda,
Mar numas veias cheias de ânsia
De o derramar na superfície muda
Que está à minha espera desde a infância.
Sou isso só, isso deveras,
Como as aves, que têm no voo a própria lei,
E como a pedra é pedra e as feras feras:
Elas não sabem, mas eu sei.
Ah! (ia-me esquecendo) sou também
O mandado do mar a dizer isto:
Que fui um rio até à minha Mãe
E, dela para cá, sou um pobre de Cristo,
Um homem, forte apenas do mandato,
Só grande porque o mar me penetrou:
No mais, mísero e nu; o único fato
É a pele que o pecado me emprestou.
Dito o que - deixem-me só nas águas,
Como o rasto da lua ou a alga fria,
E empreguem melhor as suas mágoas:
Esse destino me enche de alegria.
Não ocupem comigo os pescadores
Nem mergulhem a sonda à latitude
Em que é uso de bordo atirar flores
Ao capitão, morto em refrega rude.
Há tanta gente aí para salvar!
Tirem-me essa ridícula cortiça:
As espumas me aquecem, se eu gelar;
De terra, nem saudade nem cobiça.
Ah, mas ao menos espalho-me,
Ao menos sou autêntico e salino!
Se tenho frio, há musgos: agasalho-me;
Sou um bocado podre e outro divino.
Pica-me a Rosa-dos-Ventos
Que vem direita a mim como um ouriço.
Só estes fundos verdes, lentos,
Estas madeixas, este moliço!
E esta impressão, dura e insistente,
De que sou o ferro entalado
De um velho lugre desarvorado,
Cheio de craca e bico ardente.
Oh vida, desaparece
No verde e doce mar mexido!
Já, devagar, pára e arefece
Meu coração, coral caído.
Vitorino Nemésio (n. 1901 - m. 1978), in O Bicho Harmonioso (1938). «Em 1938 e 1940, Vitorino Nemésio publica O Bicho Harmonioso e Eu, Comovido a Oeste, que representam a primeira transformação dos gostos presencistas capaz de resistir ao seu rápido envelhecimento posterior à publicação póstuma de Pessoa. Nemésio é, como poeta, a própria negação daqueles discursos de maior ou menor fôlego que fazem a fraqueza dos presencistas, embora eles pretendessem ser apenas fiéis ao fundo inconsciente e gratuito da sua intimidade. Nemésio ou conta maravilhosamente uma short story de humor, ou obtém admiráveis enxertias no jardim de temas da sua infância açoriana, a voz num registo e no ritmo dos compatrícios mais ingénuos, diluindo em ternura delicada as misérias da carne e as coisas do mar, do porto, do campo, da casa, por vezes das viagens e até o pitoresco das leituras ou glossários especiais que movimenta como pequenas alucinações vivas (...)». (A. J. Saraiva, Óscar Lopes, in História da Literatura Portuguesa)
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