terça-feira, 18 de março de 2014

SORTE DE PRINCIPIANTE


Enquanto lia Sorte de Principiante (&etc, Novembro de 2013), lembrei-me de uma canção de Sérgio Godinho intitulada Dias Úteis. Começa assim: «dias úteis / às vezes pretextos fúteis / pra encontrar felicidades / no percurso de um só dia». E já no final, canta-se: «Por pretextos talvez fúteis / a alegria é o que nos torna / os dias úteis / Por motivos talvez claros / o prazer é o que nos torna / os dias raros». Os poemas de Margarida Ferra (n. 1977) afinam pelo mesmo diapasão, com um ritmo compassado onde a experiência dos “dias úteis”, invocados a páginas 31, solicita cogitações e exercícios reflexivos de ordem desigual. A prosa introdutória intitulada Coisas quentes a baixas temperaturas dá o mote, oferecendo aos leitores de poesia referências familiares. «Mistura o que quiseres», escreve Margarida Ferra, como escrevia o livreiro da Poesia Incompleta quando expunha nos escaparates do seu weblog livros de autores com linguagens diversas (senão mesmo divergentes). Apesar de se dirigir a uma segunda pessoa, este texto funciona como uma arte poética que guiará a versificação subsequente: «Não espreites perfis. Mistura o que quiseres, podes ser duas pessoas ou mais: vender e ser vendido, escrever biografias e cortá-las até terem duas linhas - uma delas pode ser tua, os outros relatos também são falsos. Ouve e copia sotaques alheios, como se a tua família fosse outra. Mistura o que quiseres, não expliques, não te queixes, cita sem saber quem citas. Escreve sempre que precisares». (p. 9) O tom recomendativo, que se repete em alguns poemas, por vezes sob a forma de receita, falível como todas as receitas, não deve iludir-nos. Na realidade, ele dissimula uma insegurança que nada tem que ver com a eventual elevação do sujeito poético face aos seus leitores. Dirigindo-se a outrem, é a si mesmo que se dirige - numa clara renúncia do biografismo que contamina os versos e do confessionalismo que fica sempre aquém da complexidade existencial. A autora protege-se, deste modo, de eventuais confusões entre o texto enquanto expressão do Eu, fixado num tempo e num espaço específicos, e o Eu enquanto edifício mais ou menos estável, singular, em construção permanente até à hora da morte. Pertinente, pois, até pelo movimento que sugerem, a divisão dos poemas em três conjuntos: Poemas do Início, Poemas do Meio, Poemas do Fim, todos eles numerados e apenas por três vezes intitulados (Escreve sempre que precisares, Leio menos do que penso, Não te iludas). Reproduzo os títulos por duas razões: 1.ª tornam perceptíveis a alternância entre o discurso na primeira pessoa e o discurso dirigido a uma segunda pessoa (que, como disse, não suprime a primeira); 2.ª relevam a importância do texto introdutório, chão sobre o qual os poemas despontam e se desenvolvem. Prescrições, instruções, "receituários" são, neste contexto, formas engenhosas de exprimir um esforço de autoconhecimento onde se notam inquietações íntimas e uma certa desarrumação emocional, porventura geradas pelas rotinas da vida doméstica, pelo “tédio”, pelo sedentarismo, pelo adiamento das rupturas ou de acções menos convencionais (ou mesmo por uma certa solidão que advirá da incapacidade de reconhecer a singularidade de um ser esbatido entre multidões): «Apaixonei-me todas as vezes / e ainda assim foram insuficientes / para a idade e dedos que tenho. // Conduzo a alta velocidade, / ignorante dos radares. / Foram pelo menos quinze, / os túneis até hoje. // Escapei ilesa. Frases mal pronunciadas, / suspiros demasiado presentes, / uma t-shirt usada em excesso / em dias de sono longe, / memórias inesperadas, / longas páginas de prosa, / poesia, jornalismo e catálogos / de venda postal / têm-me salvo com frequência / do abismo. // Ensinavas-me a viver longe e / podia acreditar em ti, / se me chamasses / assim e outros termos vulgares, / entre dois vídeos. Só que ninguém / enfrenta a câmara / antes do próximo semáforo» (pp. 16 - 17). Exemplar no desafio que coloca a si próprio, este poema traduz a paisagem do conjunto. Nas entrelinhas, o que torna os dias úteis e respiráveis. Mas também o que os torna fúteis e (até ver) suportáveis. 

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