Se a lenda contasse, diria que o escritor norte-americano de
origem italiana John Fante (1909-1983) foi o guia espiritual do escritor
norte-americano de origem germânica Charles Bukowski (1920-1994). Para lá da
vida de escritor, embrulhada entre romances, contos, argumentos para filmes
nunca concretizados, houve um homem tragicamente perseguido por uma infância
paupérrima e desenraizada. Herdou do pai pouco mais que uma fiel amizade ao
copo, tão fiel que lhe desenvolveu problemas de diabetes culminados em duas
pernas amputadas. Na nota biográfica que acompanha a edição portuguesa de A
Confraria do Vinho (Teorema, 2007), Fante é impertinentemente tratado como
alguém que desperdiçou o seu talento. Os livros aí estão, passados tantos anos,
a provar exactamente o contrário. Talvez seja mania portuguesa, país de fados e
sacrifícios remansosos, julgar que para se dar proveito ao talento impõe-se que
a vida seja desperdiçada. Nem uma coisa, nem outra, mais ainda quando ambas
andam tão interligadas. Acrescenta-se, então, uma sórdida vida de vagabundagem
e ocupações várias como meio de sobrevivência. Sublinho também, da supramencionada
nota, a referência a um suposto envolvimento «com as mulheres erradas». Tendo
em conta o poço de virtudes que o escritor foi, é caso para questionar se terá
John Fante sido o homem certo para Joyce Smart - com quem casou em 1937 e de
quem nunca mais se separou. De resto, a mulher viria a ter um papel crucial na
sua carreira quando, já cego e numa cadeira de rodas, era ela quem escrevia o
que o autor ditava. Fante escreveu sobre a sua própria vida, sendo, porém,
perigoso julgar que se limitou a escrevê-la. Há coincidências inegáveis: o
catolicismo extremo da mãe, os anos de privações, uma vida familiar
conflituosa, as ambiguidades da identidade italo-americana, a luta pela afirmação
enquanto escritor, são temas presentes na obra como foram questões na vida. Não
obstante, o tratamento irónico, com as pontas afiadas tanto para si próprio
como para a comunidade envolvente, os exageros, as perspectivas alucinadas, a
dramatização dos pormenores transforma esta escrita num terreno mais pantanoso
do que à partida possa parecer. Não admira que Bukowski o endeusasse, tratando
de encontrar para si mesmo um alter ego (Henry Chinaski) tal como Arturo
Gabriel Bandini o foi para John Fante. Estrada para Los Angeles (Editora
Objectiva/Alfaguara, Outubro de 2013), escrito em 1933 mas publicado apenas em
1985, foi o primeiro de quatro volumes hoje conhecidos como The Bandini
Quartet. Os outros são Wait Until Spring, Bandini (1938) – A Primavera Há-de Chegar, Bandini, Edições Ahab, Setembro de 2010 -, Ask the Dust (1939) – Pergunta ao Pó, Edições Ahab, Outubro de 2009 – e Dreams from Bunker Hill (1982), inédito
ainda na língua portuguesa. Estamos numa fase crucial do desenvolvimento da
personalidade de Bandini, no exacto momento em que se liberta do cordão
umbilical familiar para se dedicar à escrita. Perdido entre trabalhos de pouca
dura, sustento da mãe e da irmã, Bandini ocupa o tempo a ler livros que não
entende e cita com indisfarçável pretensiosismo. É um jovem pedante em busca de
afirmação, que se vinga do orgulho ferido pelo calvário das frustrações matando
caranguejos, formigas, moscas, imaginando-se senhor de vários impérios,
excepcional entre os demais, com uma obstinação que, bem vistas as coisas, é
tudo o que tem para não cair na teia da normalidade que vota à estupidez e à
ignorância a maioria dos homens. Simpatizamos com as suas paranóias, com as
suas ilusões e com as suas mentiras, com os seus esquemas, com a sua soberba, com
o sua pedantice, porque não podemos senão comover-nos com a honestidade de uma
prosa que não procura disfarçar a humanidade naturalmente contraditória do seu
herói. A determinação com que assume o seu destino equivale à insensatez das
suas acções, tornando-o, sem dúvida, especial num meio onde tudo o que se espera
dele é que seja igual aos outros. E se
consegue ser intolerante e cruel, tomado por um orgulho incomensurável, também é
de uma timidez desarmante com as mulheres e de um pungente onirismo existencial.
Humano, demasiado humano, como queria o seu mestre Nietzsche, tanto na raiva e
no ódio como na paixão e na amargura.
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