quarta-feira, 23 de abril de 2014

ESTRADA PARA LOS ANGELES

Se a lenda contasse, diria que o escritor norte-americano de origem italiana John Fante (1909-1983) foi o guia espiritual do escritor norte-americano de origem germânica Charles Bukowski (1920-1994). Para lá da vida de escritor, embrulhada entre romances, contos, argumentos para filmes nunca concretizados, houve um homem tragicamente perseguido por uma infância paupérrima e desenraizada. Herdou do pai pouco mais que uma fiel amizade ao copo, tão fiel que lhe desenvolveu problemas de diabetes culminados em duas pernas amputadas. Na nota biográfica que acompanha a edição portuguesa de A Confraria do Vinho (Teorema, 2007), Fante é impertinentemente tratado como alguém que desperdiçou o seu talento. Os livros aí estão, passados tantos anos, a provar exactamente o contrário. Talvez seja mania portuguesa, país de fados e sacrifícios remansosos, julgar que para se dar proveito ao talento impõe-se que a vida seja desperdiçada. Nem uma coisa, nem outra, mais ainda quando ambas andam tão interligadas. Acrescenta-se, então, uma sórdida vida de vagabundagem e ocupações várias como meio de sobrevivência. Sublinho também, da supramencionada nota, a referência a um suposto envolvimento «com as mulheres erradas». Tendo em conta o poço de virtudes que o escritor foi, é caso para questionar se terá John Fante sido o homem certo para Joyce Smart - com quem casou em 1937 e de quem nunca mais se separou. De resto, a mulher viria a ter um papel crucial na sua carreira quando, já cego e numa cadeira de rodas, era ela quem escrevia o que o autor ditava. Fante escreveu sobre a sua própria vida, sendo, porém, perigoso julgar que se limitou a escrevê-la. Há coincidências inegáveis: o catolicismo extremo da mãe, os anos de privações, uma vida familiar conflituosa, as ambiguidades da identidade italo-americana, a luta pela afirmação enquanto escritor, são temas presentes na obra como foram questões na vida. Não obstante, o tratamento irónico, com as pontas afiadas tanto para si próprio como para a comunidade envolvente, os exageros, as perspectivas alucinadas, a dramatização dos pormenores transforma esta escrita num terreno mais pantanoso do que à partida possa parecer. Não admira que Bukowski o endeusasse, tratando de encontrar para si mesmo um alter ego (Henry Chinaski) tal como Arturo Gabriel Bandini o foi para John Fante. Estrada para Los Angeles (Editora Objectiva/Alfaguara, Outubro de 2013), escrito em 1933 mas publicado apenas em 1985, foi o primeiro de quatro volumes hoje conhecidos como The Bandini Quartet. Os outros são Wait Until Spring, Bandini (1938) – A Primavera Há-de Chegar, Bandini, Edições Ahab, Setembro de 2010 -, Ask the Dust (1939) – Pergunta ao Pó, Edições Ahab, Outubro de 2009 – e Dreams from Bunker Hill (1982), inédito ainda na língua portuguesa. Estamos numa fase crucial do desenvolvimento da personalidade de Bandini, no exacto momento em que se liberta do cordão umbilical familiar para se dedicar à escrita. Perdido entre trabalhos de pouca dura, sustento da mãe e da irmã, Bandini ocupa o tempo a ler livros que não entende e cita com indisfarçável pretensiosismo. É um jovem pedante em busca de afirmação, que se vinga do orgulho ferido pelo calvário das frustrações matando caranguejos, formigas, moscas, imaginando-se senhor de vários impérios, excepcional entre os demais, com uma obstinação que, bem vistas as coisas, é tudo o que tem para não cair na teia da normalidade que vota à estupidez e à ignorância a maioria dos homens. Simpatizamos com as suas paranóias, com as suas ilusões e com as suas mentiras, com os seus esquemas, com a sua soberba, com o sua pedantice, porque não podemos senão comover-nos com a honestidade de uma prosa que não procura disfarçar a humanidade naturalmente contraditória do seu herói. A determinação com que assume o seu destino equivale à insensatez das suas acções, tornando-o, sem dúvida, especial num meio onde tudo o que se espera dele é que seja igual aos outros. E se consegue ser intolerante e cruel, tomado por um orgulho incomensurável, também é de uma timidez desarmante com as mulheres e de um pungente onirismo existencial. Humano, demasiado humano, como queria o seu mestre Nietzsche, tanto na raiva e no ódio como na paixão e na amargura.

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