Fui ontem para Lisboa com a intenção de comemorar os 40
anos do 25 de Abril. É uma tradição que prezo mais do que a noite de Natal.
Tenho as melhores memórias do dia, às cavalitas ou de mão dada com o meu pai a
descer a Avenida da Liberdade. Dantes, ia a família toda. Este ano, fui
sozinho. Ontem à noite, no Terreiro do Paço, fiquei espantado com o que vi. As
pessoas estavam aperaltadas, tinham-se vestido para sair à noite, foram a um
concerto. Havia filas para a cerveja. Entre as Portas de Santo Antão e o
Terreiro pouco vi que não me fizesse sentir deslocado, parecia estar na fila para
um musical do La Féria no Politeama. O fogo-de-artifício não iludiu o incómodo.
Estou a ficar velho e resmungão, espero das massas o que não é sequer sensato
esperar. As pessoas estavam ali para se divertirem, eu também. Mas temos
conceitos divergentes de divertimento. E a sensibilização para causas políticas
urgentes, se pode fazer do folclore sensacionalista meio para chegar às
pessoas, não pode transformar-se num esvaziamento completo, por afastamento e
indiferença, do ideal, do discurso, da mensagem, da importância de fazer o outro
entender a vitalidade do conhecimento e do pensamento, a importância de não
reduzirmos a nossa existência ao espectáculo. Dançar e rir todos os dias, como
queria Nietzsche, mas fazê-lo no exercício do pensamento e da reflexão, não
simplesmente distraindo a exigência com fantochada, pão e jogos. Hoje a coisa
também não começou bem, com a comunicação social a dividir-se entre os capitães
no Largo do Carmo e os trampões na Assembleia da República. Não fosse Jerónimo
a acusar o desabafo reaccionário de Cavaco, e teria sido tudo bafiento na casa
da democracia. Discursos de circunstância, alentejanos a cantar para o senhor
Presidente, o senhor Presidente a tocar violino para os portugueses, Durão
Barroso na sombra, uma corte de arrivistas insensíveis e gatunagem incólume. A
maior parte daquela gente, representada em Cavaco como símbolo da desvergonha, não
me merece respeito algum. São responsáveis objectivos pela degradação do país.
E se não me espanta não terem vergonha na cara, o mesmo não poderei dizer não
terem na cara vergonha os portugueses que os elegeram e todos os outros que os
alimentam no poder por pouco mais fazerem do que não quererem saber. É caso de estudo. Como certamente será a síndrome de Pedro que
atingiu Vasco Lourenço. Há anos que o ouvimos: vem aí a violência, vem aí a
convulsão social, mas ainda ao fundo do horizonte não se vislumbram incêndios.
Quando vier, ninguém acreditará. Na rotunda do Marquês, em círculos
infindáveis, lá estavam os dignos representantes da convulsão por vir. Hidra
de Lerna descendo a avenida, em saudável civismo, cantando, apregoando,
dançando. Ali, Garcia Pereira. Acolá, Rui Tavares. Aqui, Carmelinda Pereira.
Além, Fernando Rosas. E entre as bandeiras da JCP e da Intersindical, os jovens
socialistas, os gays, as lésbicas, associações sem fim, colectividades,
reivindicações, desejos, manifestações para todos os gostos de quem não goste
de Cavaco, Passos, Portas e troika Lda. No Rossio, lembram-se os valores de
Abril e arriscaram-se até soluções. A luta continua. Do outro lado da praça, junto ao
Teatro Nacional D. Maria II, os actores eram outros. Gritava-se: «A esquerda unida jamais será vencida».
Disse-me Marta Raquel ser a voz do operário. E quem assim gritava empunhava
cartazes com os rostos das esquerdas. Entre Rosa Luxemburgo, Marx e Lenine, Che
e Robespierre, os poetas, Sophia, Natália, até Lou Reed, muitos, tantos. Nenhum deles, que eu saiba, operário. Esqueceram-se, porém, do Buíça, que é de quem mais precisamos. Assim a diversidade da esquerda, Hidra
de Lerna descendo a avenida, que nunca mais será vencida, pelo menos, nesta sua
variedade. Como o espectáculo, o de variedades, que somos todos nós maravilhados
com o fogo-de-artifício enquanto na Assembleia da República uma reformada aos
42 anos e um Presidente sem culpa escutam atentamente Grândola Vila Morena na voz de um reverente coro d'alentejanos. De volta, no Expresso, Al-Mu’Tamid
arrancou-me a lágrima derradeira:
Solta a alegria! Que fique desatada!
Esquece a ânsia que rói o coração.
Tanta doença foi assim curada!
A vida é uma presa, vai-te a ela!
Pois é bem curta a sua duração.
E mesmo que tua vida acaso fosse
De mil anos plenos já composta
Mal se poderia dizer que fora longa.
Que seres triste não seja a tua aposta
Pois que o alaúde e fresco vinho
Te aguardam na beira do caminho.
Que os cuidados não sejam de ti donos
Se a taça for espada brilhante em tua mão.
Da sabedoria só colherás a turbação
Cravada no mais fundo do teu ser.
É que, de entre todos, o mais sábio
É aquele que não cuida de saber.
3 comentários:
Como boa pessoa que sou, passe a modéstia, fui à Luz ver o Slb-Juve. As 1ª e 2ªs estrofes do poema final contêm (por outras palavras obviamente) exatamente as mesmas ideias que um típico Alentejano me transmitiu junto à roulotte das bifanas. Nunca o tinha visto, nem ele a mim. E saiu-se com isto. E dou por mim a pensar que a vida é isto, pequenos nadas, e que realmente mais vale não saber, ou não querer saber. Acrescentou ele que não gosta de estar em Portugal (vive em Inglaterra) porque aqui é só filhos da puta. E não se referia aos políticos, era mesmo ao povo; o que me pareceu um pouco hipócrita, mas também ninguém é perfeito...
https://www.youtube.com/watch?v=KaSrvWgLaL8
Ai, ai, Henrique, o nosso país não é deste mundo!
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