É rica a história de Lisboa, ancestral porto da
Europa onde desde sempre confluíram povos e culturas diversas. Encalhada entre
o seu natural cosmopolitismo e o provincianismo típico da nação, com uma
população essencialmente miscigenada, sofreu ao longo dos séculos alguns abalos
importantíssimos. Depois das invasões romana e mourisca, o primeiro desses
abalos terá sido o cerco no ano de 1147. A tomada de Lisboa aos mouros, que deixaram
espalhadas pela cidade marcas ainda hoje facilmente detectáveis, foi
magistralmente evocada por Saramago no romance História do Cerco de Lisboa (1989).
A inclinação para o mar ofereceu à cidade características posteriormente
desenvolvidas com a aventura ultramarina, os chamados descobrimentos, as
conquistas de territórios longínquos e a chegada desses ecos ao Terreiro do
Paço. O segundo abalo é o terramoto de 1755, a ruína, a destruição e a miséria
espalhados pelas ruas da capital. O processo de reconstrução que se seguiu, notável,
veio a encontrar já no Estado Novo a congruente homenagem ao punho de ferro de
Pombal na Rotunda do Marquês. Há um terceiro abalo, a todos os níveis
impressionante, que consiste no acolhimento e (re)integração de centenas de milhar de
retornados após o 25 de Abril de 1974 e respectiva descolonização. São três
momentos históricos fundadores de uma cidade, comoventes até pelo exemplo de elevada
estatura moral que representam, tão elevada que nos é hoje difícil aceitá-los
como factuais. A atitude daninha e miserabilista a que nos fomos submetendo nas
últimas décadas é de tal forma aglutinadora do espírito que parece mentira ter
sido possível edificar uma cidade desta grandeza ao longo de mais de dois mil
anos. Mas o interesse desta Breve História de Lisboa – cidade do mar (Lisbon,
City of the Sea), escrita por um estrangeiro de seu nome Malcolm Jack, não se
restringe ao tom laudatório da (re)visão histórica. Alguns episódios
permitem-nos compreender um pouco melhor porque somos o que somos enquanto
povo, aceitando, obviamente, a individualidade de cada um dos elementos que
compõem o todo oferecendo-lhe contradição. Tomemos de exemplo a desgraçada
figura de Gabriel Malagrida, jesuíta italiano que pregava na capital à época do
terramoto. Compreensível que em 1755 um acontecimento de tal envergadura
inspirasse a imaginação clerical. Atribuído o terramoto à fúria divina, de
costas voltadas para o luxo e a opulência exibidos por Lisboa, nomeadamente
onde era possível exibi-los, foi este Malagrida o principal porta-voz de Deus
na terra. A cidade estava contaminada pelo pecado, apesar de haver quem
julgasse o terramoto «um acto de amor e um instrumento mais nobre do que aquele
que os pecaminosos cidadãos de Lisboa realmente mereciam» (p. 116). O missionário
italiano, protegido pelo rei D. João V, queixava-se dos passatempos lascivos
dos lisboetas, apelando ao jejum, ao arrependimento, à conversão. A reconstrução da cidade era questão sem
importância. O debate estava instalado e extravasou fronteiras. O Marquês de
Pombal é que não estava para conversas. Virou-se para o clero português,
empossou o irmão para chefiar a Inquisição, persuadiu os clérigos portugueses a
insurgirem-se contra Malagrida, acabando por atirar o herege italiano para a
fogueira depois de ser garrotado. Dir-se-á hoje que Malagrida estava a
pedi-las, mas também não podemos deixar de notar no episódio a supremacia do
pragmatismo face ao pensamento. Lembrei-me disto depois de ouvir ontem o
ex-Presidente da República General Ramalho Eanes, numa intervenção extraordinariamente
sentida, apelar à reflexão que tanto tem faltado ao país. Ora, é precisamente
esta ausência de reflexão que permite todo o tipo de abusos há demasiado tempo
perpetrados pelas elites no poder. E aqui chegamos à visita de Byron, o poeta
romântico inglês que chegou a Portugal sabendo apenas pronunciar alguns palavrões.
Chocado com a imundície de Lisboa, matilhas de cães ingovernáveis nas ruas,
bandos de jovens armados com facas, um clero mendicante, o que Byron mais
apreciou em Lisboa foi… Sintra. Diz Malcolm Jack que Childe Harold, que ainda não
li, publicado em 1812, «está repleta de um tom distintamente lusofóbico». Mas a
verdadeira decepção de Byron é com a postura dos portugueses face à invasão
francesa: «Byron era um jovem imbuído de ideias de lutas gloriosas pela
liberdade: era a essência dos heróis; uma convocação exultante às armas. A ausência
de um espírito de combate em qualquer nação teria atraído o seu escárnio. A
atitude de Byron para com Portugal era portanto complexa. Chegou cedo à conclusão
que os portugueses eram uma raça servil. Até nem mereciam possuir o paraíso de
Sintra» (p. 153). Este povo servil sem espírito combativo é-nos tristemente
familiar, quarenta anos depois de uma revolução militar que nos libertou da
ditadura e contadas praticamente três décadas de ruinoso cavaquismo. Lisboa
permanece, deste modo, como símbolo de um país com uma história muito antiga e
complexa, mas também como berço de um povo aparentemente conspurcado pela nuvem
introspectiva, langorosa, conformada e apática da cidade.
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