segunda-feira, 28 de abril de 2014

ODE DO HOMEM DE PÉ


O que vês, escreve-o
Apoc., I, 11

Rua ferida pelo sol mais uma vez te saúdo
pelos passos lentos como o rolar dos anos
pelos dias vulgares cheios de maçãs
pela timidez que na loja nos assalta de pedir o troco
pelas crianças mal vestidas para a vida
nos bicos dos pés te saúdo
pela paixão que transferiu campaspe
do amor de alexandre então dono do mundo
pra o coração de apeles pintor pobre
que tinha como dom o simples dom de olhar
por tantas coisas belas que ficaram fora dos meus versos
pelos rostos presentes pelo grande ausente por tudo

Oh como o sofrimento purifica minha rua
Ele passa-nos as mãos por todo o corpo
desce por nós como um olhar de mãe
e a mais agasalhada vida vê-se nua

Voz justificação de toda esta arquitectura que somos
chove a meu lado atrás de mim na minha frente
Eu mero obstáculo à incondicional vitória da chuva
peço o teu concurso para cantar a rua à chuva

Rua onde as casas olham quase com desgosto
aquela que a seu lado é demolida
onde eu pecador me confesso e agradeço
este milagre de estar vivo ainda na quinta-feira
passadas já segunda terça e quarta
e poder erguer as duas mãos acima da terra
rua onde passaram os meus pais
onde invejei pela primeira vez o vinco das calças dos adultos
onde compartilhei com estranhos a estrela da manhã
e chorei a queda do maior amigo que não sei quem foi
rua onde tudo ganhei tudo logo perdi
onde assisti ao convívio silencioso das mais diversas árvores
e vi van gogh o holandês entre elas esperar as estações
que vinham alegres e submissas de mãos dadas com crianças
onde pensei que a dança liberta da condição de seres poisados que todos temos na vida de todos os dias
e muitas outras coisas que depois esqueci
rua que me levaste a tanto sonho vão
que me viste passar neste meu corpo sem nunca o conhecer
bem pouco basta minha rua para fazer feliz o homem:
acender por exemplo repentinamente a luz
na sala onde pairava um certo mal-estar
o que dissipa como que para sempre a sua triste condição
Ou então na morte do escritor amigo recitar
o elogio fúnebre de há muito preparado
que se haverá de matar ainda mais o morto
a ele vivo terá por força de o imortalizar

Inútil inverter-te como antes rua para renovar a vida
A inquietação que eu sentia quando me esquecia do sinal da cruz
quando de pernas excessivamente livres
cingia não de cruz mas sim de coração os inúteis caminhos
quando se me exigia o sacrifício dos olhares
e era meu dever nunca fazer ruído algum ao passar pela vida
Deixou de ser uma aventura atravessar-te rua
ao fim de ti nem há já esse pequeno almoço
aonde pelo menos qualquer coisa começava
Não disponho de alento para muitos anos
Sinto-me velho: nasci em 33 estamos em 60
vou fazer vinte anos. Isento do serviço militar
incapaz de lutar mandar obedecer
como que fiquei sempre à espera da maioridade
É tempo de assistir aos funerais dos amigos
começo a estar bom para jazer
«bom é acabar» - dizia o vice-rei
Já sou de deus deixei de ter idade rua
ele passou a ser a minha própria idade
não me levou em conta o céu antecipado
e se algum dia porventura alguma criatura me moveu
o deus que é também teu há muito o esqueceu já ó rua
Se título algum tive já me vai caindo
só deus é minha veste e minha história
Que ele me abra ó rua a porta da palavra

Agora que por fim alguém em sua voz me chama
pelos rostos presentes pelo grande ausente
que me livrou num tempo de injustiça por tudo
ao fim de ti ó rua te saúdo mais uma vez te saúdo

Ruy Belo (n. 1933 - m. 1978), in Aquele Grande Rio Eufrates (1961). «1961 é uma data complexa para a mais recente poesia portuguesa. Nesse ano seriam publicados os primeiros livros daqueles que se tornariam os dois mais importantes poetas surgidos nessa década: Aquele grande Rio Eufrates de Ruy Belo e A Colher na Boca de Herberto Helder, ambos editados pela Ática. (...) O jogo conceptual de referências ao cristianismo manifesta (...) a consciência heterodoxa de que é a falta de humanidade de Deus aquilo que provoca o afastamento do homem. Talvez resulte dessa falha o empenhamento profundo da sua poesia em relação ao mundo da vida, numa enumeração realista que nunca se aproximou dos esforços de imaginação e verbalização pós-surrealistas (isto não é um juízo de valor) que contaminaram grande parte da sua geração. A tradição neo-realista de atenção ao quotidiano colectivo e individual, misturada a um certo lirismo apiedado pelos mais solitários ou desprotegidos, ecoa na sua poesia, embora inscrita numa visão escatológica do homem onde um Deus, humanizado com o dos Evangelhos, acolhedor, atento e inexistente, metáfora de Si próprio, o espera ao fim. (...) A leitura do homem em função do seu fim (a morte, Deus) conduz à sua compreensão como ser metafisicamente solitário, mesmo na sua solidariedade. Essa solidão central é outro dos insistentes motivos da sua poesia. (...) Também uma presença, por vezes subtil, por vezes ácida, da ironia se distribui por muitas das constatações que faz de si e dos outros. (...) Este processo constitui um dos contributos mais importantes de Ruy Belo à nossa poesia: a corrosão por uma ironia não vincada, mas tenaz, sem sarcasmo, mas jocosa, da sentimentalização excessiva do mundo vivido e do sentido». (Joaquim Manuel Magalhães, in Os Dois Crepúsculos)

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