terça-feira, 22 de abril de 2014

RED RIVER (1948)


É difícil determinar a influência exercida pelas histórias de Borden Chase (1900-1971) na construção de uma identidade americana. Membro da Motion Picture Alliance for the Preservation of American Ideals, que se caracterizava por um fervoroso anticomunismo, Chase assinou alguns argumentos onde a coragem e a determinação dos homens do Velho Oeste é sublevada, fazendo a apologia de um individualismo que nem sempre pareceu neutral aos olhos dos realizadores com quem trabalhou. Já vimos como é complexo decifrar Vera Cruz (1954) de um ponto de vista meramente político, com as lutas pela independência mexicana secundarizadas face ao oportunismo dos mercenários que a Guerra de Secessão havia produzido. Backlash (1956) apontava para um drama familiar e The Far Country (1954) sublinhava o heroísmo do cowboy solitário, ainda que o final inflicta na direcção de uma solidariedade social que pode agradar tanto a gregos como a troianos. Pelo argumento de Red River (1948), Borden Chase recebeu uma nomeação para os Oscars. Curiosa nomeação. Na realidade, o primeiro western de Howard Hawks está repleto de “curiosidades”. Borden Chase não gostou que a sua história, inicialmente intitulada The Chisholm Trail, passasse a chamar-se Red River. Vislumbrava no título possíveis metáforas comunistas. O argumento acabaria por ser reescrito por Charles Schnee, que acrescentou à narrativa uma “ousada amizade” entre as personagens interpretadas por Montgomery Clift e John Ireland. Apesar de muitas cenas não terem passado na censura (prática corrente no mundo liberal, forçada pelo puritanismo dos mercados), são ainda hoje perceptíveis muitas das provocações saídas da cumplicidade entre Hawks e Schnee. Numa delas, Montgomery Clift trata uma ferida provocada por uma flecha espetada no ombro de Joanne Dru. Depois de retirar a flecha, chupa-lhe o sangue do ombro para expurgar possíveis venenos. O erotismo da cena é evidente. O que não será tão evidente é o facto de praticamente metade do filme ter sido filmado em estúdio, apesar de mais de 90% das sequências decorrerem a céu aberto. Feito notável, sobretudo quando estão em causa paisagens naturais onde o único elemento civilizacional são as armas que os cowboys transportam à cintura. O filme de Howard Hawks (1896-1977) é absolutamente excepcional, porventura um dos mais importantes de toda a história do cinema norte-americano. Com um plot que repercutirá em The Far Country, assim como em inúmeros westerns posteriores, este é o clássico dos clássicos quando pretendemos compreender a figura do cowboy. Estamos distantes do western urbano, com seus conflitos morais e legais, das vilas indefesas e perdidas no meio do nada, afastados das guerras da cavalaria, fora do circuito dos fora-da-lei… Red River acompanha a tournée de um grupo de cowboys, com uma manada de dez mil cabeças de gado, através do Chisholm Trail. Trata-se de um trilho que ligava o sul do Texas, então estagnado sob os efeitos da guerra, às linhas de comboio do Kansas, onde o gado poderia ser distribuído pelas terras prósperas do norte. Mais uma vez, a música de Dimitri Tiomkin (Duel in the Sun, High Noon, Gunfight atthe O.K. Corral, Rio Bravo, Last Train from Gun Hill) oferece um colorido romântico à acção, a qual aparece pontuada por separadores manuscritos que dividem sequências com inevitáveis saltos temporais. Entre o começo da narrativa e o início da viagem, decorrem cerca de 15 anos (condensados em cerca de 15 minutos de filme). A uma média de quinze quilómetros por dia, os 1000 quilómetros percorridos pelo grupo perfazem mais de dois meses em contínua viagem. Hawks quer contar uma história, embora o faça com um sentido artístico que não pode ser subvalorizado tendo em conta as limitações que a máquina de fazer de dinheiro de Hollywood então impunha aos seus artistas. São inesquecíveis os planos no interior de uma caravana que atravessa o Red River (evocação de Moisés a atravessar o Mar Vermelho), a sequência com o gado em debandada a meio da noite, a transformação da luz no decorrer das 24 horas de duro trabalho, cenas nocturnas alternando com cenas diurnas numa paleta de negros e claros que gera a ilusão de estarmos perante um filme colorido, noites chuvosas e manhãs solarengas, a transformação dos rostos de John Wayne e Walter Brennan (My Darling Clementine, Drums Across the River, The Far Country, Rio Bravo), amigos (quase) inseparáveis, ao longo dos anos, num elenco de luxo que conta tanto com actores experientes como com estreias promissoras. Temos, assim, velhos conhecidos de outras aventuras tais como Hank Worden (Duel in the Sun, Fort Apache, The Indian Fighter, The Searchers, Forty Guns, True Grit) e Noah Beery Jr. (Decision at Sundown, The Spikes Gang) ao lado de jovens promissores como Joanne Dru (She Wore a Yellow Ribbon), Harry Carey Jr. (She Wore a Yellow Ribbon, Rio Grande, The Searchers, Rio Bravo, Cheyenne Autumn) ou os irreverentes John Ireland (My Darling Clementine, I Shot Jesse James, Gunfight at the O.K. Corral) e Montgomery Clift. A presença de Montgomery Clift num dos principais papéis é especialmente relevante, sendo conhecido o mal-estar instalado durante as filmagens que a homossexualidade do jovem actor provocou junto de John Wayne e Walter Brennan. Mal-estar que, de resto, só pode ter ajudado à construção das personagens, que ao longo da narrativa desenvolverão conflitos sanados apenas numa cena derradeira com o wit clássico dos melhores westerns da década de 1940. Vale a pena rever, no entanto, uma sequência que marca o início da ruptura entre a personagem de John Wayne e o seu grupo de homens. A intransigência de Wayne transformá-lo-á num tirano desconfiado e paranóico, vítima de uma obsessão que encontra paralelo no capitão Ahab de Herman Melville. Red River também aceita esta perspectiva de uma odisseia fundadora de uma identidade nacional, na mesma medida em que questiona e problematiza a grande tragédia humana.


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