As pessoas estão, na sua maioria, habituadas ao seu e a qualquer trabalho ou ocupação regular e, quando isso lhes falta, perdem imediatamente o conteúdo da vida e a consciência e não são mais que um estado mórbido de desespero. A cada um acontece o mesmo que aos muitos outros. Pensam que se regeneram, mas na realidade é um vácuo em que se tornam meio malucos. Assim, todos têm nas tardes de sábado as ideias mais malucas e tudo acaba sempre em insatisfação. Começam por mudar de sítio armários e cómodas, mesas e cadeiras e mesmo as próprias camas, escovam os fatos nas varandas, engraxam os sapatos como loucos, as mulheres sobem para os peitoris das janelas e os homens vão para a cave e levantam aí nuvens de pó com os vasculhos. Famílias inteiras acham que têm de fazer arrumações e atiram-se ao recheio das suas casas e remexem-no de uma forma louca e enlouquecem elas próprias. Ou deitam-se e entregam-se aos seus padecimentos, refugiam-se nas suas doenças, que são doenças permanentes, de que se lembram ao acabar o trabalho, nas tardes de sábado. Os médicos conhecem isso, nos sábados à tarde os seus serviços são requeridos mais do que em qualquer outro momento. Com o largar do trabalho, começam a fazer-se sentir as doenças, de repente aparecem as dores, a famosa dor de cabeça de sábado, as palpitações do coração dos sábados à tarde, desmaios, acessos de fúria. Durante toda a semana as doenças são reprimidas, acalmadas pelo trabalho e mesmo por qualquer simples ocupação, mas nas tardes de sábado fazem-se sentir e a pessoa perde imediatamente o equilíbrio. E quando aquele que acaba de trabalhar ao meio-dia se apercebe pouco depois nem que seja só da sua verdadeira situação, que é de qualquer modo sempre uma situação desesperada, seja ele quem for, seja o que for, esteja onde estiver, é forçado a dizer a si próprio que não é senão uma pessoa infeliz, mesmo que afirme o contrário. Os poucos felizes que o sábado não deita abaixo confirmam apenas a regra. No fundo, o sábado é um dia que todos receiam, ainda muito mais que o domingo, pois no sábado todos sabem que têm ainda pela frente o domingo e o domingo é o dia mais terrível, mas ao domingo segue-se a segunda-feira e esta é dia de trabalho, o que torna o domingo suportável. O sábado é temível, o domingo é terrível, a segunda-feira traz o alívio. Qualquer outra afirmação é malévola e estúpida. No sábado acumula-se a trovoada, no domingo descarrega, na segunda-feira vem a calma. O homem não gosta da liberdade, tudo o mais é mentira, ele não sabe o que fazer com a liberdade, mal se encontra livre ocupa-se com o abrir de guarda-fatos e cómodas, com a ordenação de papéis antigos, procura fotografias, documentos, cartas, vai para o jardim e revolve a terra ou corre em qualquer direcção de uma forma inteiramente absurda e inútil, quaisquer que sejam as condições atmosféricas, e chama a isso passeio.
Thomas Bernhard, in Autobiografia, trad. José A. Palma Caetano, Sistema Solar, Janeiro 2014, pp. 182-184.
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