São migalhas enormes, apodrecidamente dispostas ao contrário.
O sumo dos limões sabe a coisas sem nexo
- toda a casa se transforma em escuridão
e a escrita é quase imperceptível:
percebo que os pensamentos navegam, não se fixam,
e, nos sonhos, os objectos estão dispostos
precisamente noutro sítio, onde os não vejo, não existem:
estão a mais, ou a menos; não são iguais, são-me estranhos, aparecem, desaparecem, e, muitas vezes não sei onde estou: acordo (não acordo) com um estranho sentimento de não saber onde estou.
Finalmente decido: é aqui; reconheço; reconheço-me.
E a mágoa é confessa, vai do princípio ao fim, vai começar o dia.
Precipito-me, sempre aleijado, no começo do dia.
Sei, bem sei, que ando aos tropeções, que não me alegro por nada deste mundo.
E tenho um medo dos diabos pelo que me venha a acontecer.
Sei que - começado o dia - não impedirá que as conversas cumulem
prazeres díspares
E que as ruas se estreitem
E que os sentimentos se concentrem
num só sentimento: de angústia. Depois passa.
Passa sempre depois e por cima de mim.
Deixa-me, é certo, de pé. De pé, neste mundo de borco. Neste charco. Nesta bruma sem nada que não seja brumoso, chuvoso, incógnito, presentemente erecto e ameaçador - sempre que julgo, que me julgo livre.
Há em mim uma predestinação para o desastre, é o que julgo.
Há em mim demasiadas coisas lúgubres.
Há em mim um passeio celeste entre ciprestes prefigurando a morte.
Há em mim uma clausura empobrecida pelas paredes fixas de uma vida fechada - nunca viajei! nunca viajarei! mantenho-me fechado, dentro de mim fechado, - esse o pecado e o erro, essa a agonia.
Nunca fiz mal, é certo; adivinhei - tão simples! - a idiota forma
de transformar a palavra em alimento, em música, em reflexo irresistível do meu coração!
Mas isso que adianta? que companheiro tem? que espaço e que alegria perfaz e proporciona? que céus deixam, por isso, de estar contra nós, os acrobatas da beleza, os imbecis cicerones da virtude, os bárbaros escravos da justiça, os senhores celerados do Futuro Indeciso.
- Cuspam! cuspam em nós e amaldiçoem-nos.
As garras estão famintas.
E os homens - esses - ainda não nasceram.
Pelo menos ainda não viram o sol que nós vimos.
E isso os desgosta, e com toda a razão.
E isso lhes dá
Direito a que nos façam
PRISIONEIROS.
Damos as mãos, de graça!
Demos - de borla! - os pulsos...
Lisboa, 9 de Setembro de 1971.
Raul de Carvalho (n. 1920 - m. 1984), in Um e o Mesmo Livro (1984). «Apesar do seu atraso e das limitações apontadas, o surrealismo marca quase toda a poesia posterior a 1950 que referimos, pelos seus exercícios de automatismo subconsciente, humor negro, técnicas de utilização do acaso objectivo ou das interferências de associação verbal. Isso é já muito sensível num poeta de ritmo inestancável, pouco selectivo, mas borbulhante de fugas imaginativas e seguro em certas evocações da sua infância alentejana, Raul de Carvalho» (A. J. Saraiva, Óscar Lopes, in História da Literatura Portuguesa). «É, pelo fôlego torrencial e pela intensidade vibrante da expressão que tudo carreia, desde os entusiasmos fugazes às emoções mais profundas, desde as atitudes formais à dolorosa consciência da dignidade humana, um dos maiores líricos deste período» (Jorge de Sena, Líricas Portuguesas).
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