«O filósofo André Gorz e a sua mulher suicidaram-se hoje
na residência de ambos, em Vosnon, França, avança o jornal Le Monde citando
fontes próximas do casal». A notícia, do Público, data de 24 de Setembro de
2007, mas permanece viva como se tivesse sido ontem. Certos acontecimentos têm
essa característica, tornam-se presença assídua no decorrer dos dias. Embora saibamos
da sua inscrição no passado, teimam em não desaparecer da memória, resistem ao
esquecimento como o mais resistente dos potes. Não quebram, não se dispersam em
fragmentos. Por vezes, esta persistência leva-nos a sentir uma espécie de
dependência. Há coisa de dez anos, perguntaram-me o que eu achava da inclinação
da História para a tragédia em detrimento da comédia. É verdade que mais
facilmente recordamos um acontecimento trágico do que um acontecimento cómico,
talvez por sermos viciados na tristeza. A nostalgia e a melancolia contaminaram
uma parte tão grande da produção artística que a criação humana tornou-se quase
obediente a essas emoções negras que seduzem o público. Em aparência, o
suicídio é uma decisão trágica que provoca tristeza nos que resistem ao apelo
da morte. Tristeza e, porventura, revolta, tais as contradições que o tema
inspira. Não fomos educados, por assim dizer, para a desistência - a família
quer-nos robustos, a escola quer-nos preparados, o mundo do trabalho quer-nos
eficientes. Há delicadezas, porém, que ninguém constata até se tornarem tão
evidentes que não é mais possível fazer por ignorar. Ou então há um desapego fundador
de ordens valorativas diversas das vigentes, diversas das hierarquias de
valores que alimentam homens vigorosos em sociedades brutais. Quer queiramos
quer não, somos todos vítimas da militarização da vontade, da exorcização do
desejo, da domesticação do amor. Excepcional quando no percurso de uma vida nos
deparamos com histórias onde essa violência exercida sobre os indivíduos é
superada por uma entrega ao outro que nega tanto o isolamento como o
esvaziamento do Ser no pântano da norma. Gorz, vienense de origem judia fugido
dos nazis, encontrou Doreen, a inglesa com quem veio a casar em 1949 e com quem
decidiu morrer em 2007. Neste caso, nem a morte os separou. Carta a D. –
História de um Amor (Pianola, 2ª edição, Maio de 2014) surgiu em 2006, quando
Doreen já estava bastante debilitada pela doença (cancro). «Sinto necessidade
de reconstituir a história do nosso amor para lhe apreender todo o sentido» (p.
7), diz Andé Gorz (1923-2007), descontente com o papel atribuído ao seu amor na
obra que foi construindo, que foram construindo, ao longo da vida. É a expiação
de um homem, por certo, mas também o testemunho de um amor para além da vida. Daí
a confissão: «Contigo compreendi que o prazer não é algo que se toma ou que se
dá. É a maneira de se dar e de chamar o dom de si do outro. Demo-nos um ao
outro por inteiro» (pp- 10-11). Não é, pois, a carta de um suicida que lemos, é
antes a carta de um amor que recusa despedir-se contra a lógica do mundo em que
vivemos. Porque o mundo em que vivemos é de constantes despedidas e de lutos
mais ou menos extensos, incapaz de aceitar um amor assim, para lá da hora da
morte, um amor que aceita no meio da prosa o seu mais belo verso, a sua mais
eloquente definição: «Contigo eu podia pôr de férias a minha realidade» (p.
24). Ora, é isto que poucos estão aptos a compreender. E é isto que torna o tom
pragmático da notícia reproduzida ao alto bastante inadequado, pois André Gorz
e a mulher, cujo nome se omite por razões inexplicáveis, não se suicidaram,
simplesmente resolveram pôr de férias, para sempre, um perante o outro, as suas
realidades, realidades transformadas numa única realidade, tão única que parece
irreal. José Cutileiro, num belo necrológico então publicado no Expresso,
escrevia: «Depois de 58 anos de vida em comum, contrariaram o destino e não
sobreviveram à morte um do outro». Talvez sobrevivam agora à vida um do outro,
mais que não seja a partir destas palavras inesquecíveis: «Acabas agora de
fazer oitenta e dois anos. És ainda bela, graciosa e desejável. Faz cinquenta e
oito anos que vivemos juntos e amo-te mais do que nunca. Recentemente
reenamorei-me de ti uma vez mais e trago de novo em mim um vazio devorador que
só o teu corpo apertado contra o meu apazigua. À noite vejo por vezes a
silhueta de um homem que segue um carro funerário, numa estrada vazia e numa
paisagem deserta. Esse homem sou eu. O enterro é o teu . Não quero assistir à
tua cremação; não quero receber um frasco com as tuas cinzas» (p. 86). Sei
não ser momento para ironia, mas reparem na fragilidade deste homem que
recusa assistir ao afastamento do seu amor. A perda é-lhe penosa, seria cruz
insuportável porque quer manter o abraço que lhe apazigua o vazio. Portanto, a
opção foi seguir abraçado ao seu amor na derradeira viagem, logrando aos leitores
o mais notável dos testamentos: a história de como um amor pode resistir à
morte, mesmo que tal implique uma renúncia da vida.
3 comentários:
"Não tinhamos pressa. Eu despi o seu corpo com cautela. Descobri, miraculosa coincidência do real com o imaginário, a Vénus de Milo tornada carne. (...) Nós nos doamos inteiramente um ao outro."
Um livro comovente. Já o li e reli. Já o ofereci.
um pequeno grande livro, que na minha estante fica a fazer companhia a "a nossa necessidade de consolo é impossível de satisfazer".
Estava a pensar nessa questão do nome da amada ter sido omitido. Ocorrem-me várias hipóteses: intimidade, apropriação, deificação…
Enviar um comentário