quinta-feira, 28 de agosto de 2014

CARTA A D.

«O filósofo André Gorz e a sua mulher suicidaram-se hoje na residência de ambos, em Vosnon, França, avança o jornal Le Monde citando fontes próximas do casal». A notícia, do Público, data de 24 de Setembro de 2007, mas permanece viva como se tivesse sido ontem. Certos acontecimentos têm essa característica, tornam-se presença assídua no decorrer dos dias. Embora saibamos da sua inscrição no passado, teimam em não desaparecer da memória, resistem ao esquecimento como o mais resistente dos potes. Não quebram, não se dispersam em fragmentos. Por vezes, esta persistência leva-nos a sentir uma espécie de dependência. Há coisa de dez anos, perguntaram-me o que eu achava da inclinação da História para a tragédia em detrimento da comédia. É verdade que mais facilmente recordamos um acontecimento trágico do que um acontecimento cómico, talvez por sermos viciados na tristeza. A nostalgia e a melancolia contaminaram uma parte tão grande da produção artística que a criação humana tornou-se quase obediente a essas emoções negras que seduzem o público. Em aparência, o suicídio é uma decisão trágica que provoca tristeza nos que resistem ao apelo da morte. Tristeza e, porventura, revolta, tais as contradições que o tema inspira. Não fomos educados, por assim dizer, para a desistência - a família quer-nos robustos, a escola quer-nos preparados, o mundo do trabalho quer-nos eficientes. Há delicadezas, porém, que ninguém constata até se tornarem tão evidentes que não é mais possível fazer por ignorar. Ou então há um desapego fundador de ordens valorativas diversas das vigentes, diversas das hierarquias de valores que alimentam homens vigorosos em sociedades brutais. Quer queiramos quer não, somos todos vítimas da militarização da vontade, da exorcização do desejo, da domesticação do amor. Excepcional quando no percurso de uma vida nos deparamos com histórias onde essa violência exercida sobre os indivíduos é superada por uma entrega ao outro que nega tanto o isolamento como o esvaziamento do Ser no pântano da norma. Gorz, vienense de origem judia fugido dos nazis, encontrou Doreen, a inglesa com quem veio a casar em 1949 e com quem decidiu morrer em 2007. Neste caso, nem a morte os separou. Carta a D. – História de um Amor (Pianola, 2ª edição, Maio de 2014) surgiu em 2006, quando Doreen já estava bastante debilitada pela doença (cancro). «Sinto necessidade de reconstituir a história do nosso amor para lhe apreender todo o sentido» (p. 7), diz Andé Gorz (1923-2007), descontente com o papel atribuído ao seu amor na obra que foi construindo, que foram construindo, ao longo da vida. É a expiação de um homem, por certo, mas também o testemunho de um amor para além da vida. Daí a confissão: «Contigo compreendi que o prazer não é algo que se toma ou que se dá. É a maneira de se dar e de chamar o dom de si do outro. Demo-nos um ao outro por inteiro» (pp- 10-11). Não é, pois, a carta de um suicida que lemos, é antes a carta de um amor que recusa despedir-se contra a lógica do mundo em que vivemos. Porque o mundo em que vivemos é de constantes despedidas e de lutos mais ou menos extensos, incapaz de aceitar um amor assim, para lá da hora da morte, um amor que aceita no meio da prosa o seu mais belo verso, a sua mais eloquente definição: «Contigo eu podia pôr de férias a minha realidade» (p. 24). Ora, é isto que poucos estão aptos a compreender. E é isto que torna o tom pragmático da notícia reproduzida ao alto bastante inadequado, pois André Gorz e a mulher, cujo nome se omite por razões inexplicáveis, não se suicidaram, simplesmente resolveram pôr de férias, para sempre, um perante o outro, as suas realidades, realidades transformadas numa única realidade, tão única que parece irreal. José Cutileiro, num belo necrológico então publicado no Expresso, escrevia: «Depois de 58 anos de vida em comum, contrariaram o destino e não sobreviveram à morte um do outro». Talvez sobrevivam agora à vida um do outro, mais que não seja a partir destas palavras inesquecíveis: «Acabas agora de fazer oitenta e dois anos. És ainda bela, graciosa e desejável. Faz cinquenta e oito anos que vivemos juntos e amo-te mais do que nunca. Recentemente reenamorei-me de ti uma vez mais e trago de novo em mim um vazio devorador que só o teu corpo apertado contra o meu apazigua. À noite vejo por vezes a silhueta de um homem que segue um carro funerário, numa estrada vazia e numa paisagem deserta. Esse homem sou eu. O enterro é o teu . Não quero assistir à tua cremação; não quero receber um frasco com as tuas cinzas» (p. 86). Sei não ser momento para ironia, mas reparem na fragilidade deste homem que recusa assistir ao afastamento do seu amor. A perda é-lhe penosa, seria cruz insuportável porque quer manter o abraço que lhe apazigua o vazio. Portanto, a opção foi seguir abraçado ao seu amor na derradeira viagem, logrando aos leitores o mais notável dos testamentos: a história de como um amor pode resistir à morte, mesmo que tal implique uma renúncia da vida.

3 comentários:

Maria Eu disse...

"Não tinhamos pressa. Eu despi o seu corpo com cautela. Descobri, miraculosa coincidência do real com o imaginário, a Vénus de Milo tornada carne. (...) Nós nos doamos inteiramente um ao outro."

Um livro comovente. Já o li e reli. Já o ofereci.

hmbf disse...

um pequeno grande livro, que na minha estante fica a fazer companhia a "a nossa necessidade de consolo é impossível de satisfazer".

Marina Tadeu disse...

Estava a pensar nessa questão do nome da amada ter sido omitido. Ocorrem-me várias hipóteses: intimidade, apropriação, deificação…