segunda-feira, 8 de setembro de 2014

contagens


primeiro a casa, sempre de alicerces fundos,
sólida, praticável. paredes garridas,
janelas rasgadas, varandas floridas,
telhado em cima de tudo, chaminé. por vezes
fumegante. isto por fora. por dentro
espaço. salas, quartos, cantos, nichos,
sofás, estantes, armários, louça, livros,
almofadas, revistas, bandejas, cartas,
papel. sabonete, alguidares, pratos. quadros,
velas, flores, legumes, pão, chá, café.
vestidos, meias, canetas, lâmpadas, escovas,
copos. um sem-fim de coisas. quando
se muda de casa é que se vê. são pacotes
e mais pacotes, embrulhos, o relógio de
parede protegido por cobertores,
e mesmo assim há-de sempre partir-se
qualquer coisa. para não falar das coisas que
se esmurram. e das que se esbeiçam. e das
que racham. e das que simplesmente se estragam.
e das que se perdem.

a casa está quase sempre numa rua.
a rua tem quase sempre dois passeios,
uma faixa de rodagem e casas dos dois lados.
casas da habitação, escritórios,
consultórios, cafés, mercearias, cinemas,
repartições, colégios. ou então hospitais,
esquadras da polícia, sedes de clubes,
papelarias, quartéis, oficinas de reparações,
pequenas fábricas, drogarias, pensões.
a rua muitas vezes é servida por
transportes públicos. é uma vantagem,
mas é também um inconveniente, por causa
do barulho. os moradores dessas ruas que o
digam: os carros sempre a passar, sempre
a passar, a toda a hora, noite e dia, não,
isto não é vida. antes uma rua sossegada dos
arredores. mas depois é preciso
vir nos transportes públicos. vir e ir.
ir e vir. todos os dias. de inverno ao frio,
de verão ao calor. e apertado como a sardinha.
é o reverso da medalha. não há medalha sem
reverso. e este é o reverso.

a rua fica numa cidade. normalmente fica
numa cidade. a cidade tem ruas, muitas ruas, quelhas,
e depois avenidas, praças, travessas, becos,
escadinhas, calçadas, betesgas, jardins,
parques de estacionamento, miradouros,
museus, um castelo antigo, prisões, fábricas,
armazéns, uma câmara municipal, cemitério,
transportes públicos, bancos de jardim, 
bebedouros, policiais sinaleiros, trânsito,
comércio, indústria e tudo quanto é
necessário para viver. mas a cidade é uma
balbúrdia. ninguém se entende. toda a gente se
acotovela. não há espaço nenhum. nem há
respeito. ninguém se conhece. as pessoas são
de um egoísmo atroz. na aldeia é outra coisa.
é uma vida sã. não há correrias. nem atropelos.
todos se conhecem. e se respeitam.
a menos que alguém saia dos eixos. mas
isso é raro. mais raro que na cidade. a cidade
cheira mal. a aldeia cheira a vacas e a porcos.
mas se isso é cheirar mal?!

a cidade fica num país. o país tem cidades,
vilas, aldeias, rios, regatos, montanhas,
lagos, minerais, vegetais, populações,
linhas de caminho de ferro, minas, produtos
industriais, pecuária, fronteiras,
leis, um exército, um governo, costumes,
e por vezes águas territoriais.
há países grandes e pequenos. mas um
país pequeno pode ser um grande país.
depende do coração dos habitantes e dos
governantes. há países ricos e pobres.
 mas um país pobre pode se rum rico país,
por exemplo para lá passar férias. um
país tem sempre relações amistosas com os
outros países, sem no entanto abdicar da
sua maneira de ser. um país também
tem alma. e a alma é que conta.

o país fica num continente. o continente
tem principalmente conteúdo.

o continente fica no mundo. o mundo
tem continentes, mares, ilhas, desertos,
lagos, montanhas, dois pólos cheios de gelo
e pinguins, uma exuberante flora tropical,
ventos, tufões, trombas de água, tremores
de terra, estações do ano, um satélite com
várias fases, um astro-rei, nuvens, um céu, 
estrelas, cometas, casas, homens, abelhas,
formigas e outros, muitos outros animais,
variados e de hábitos diversos.
mas o homem é o rei dos animais.
e a mulher é naturalmente a rainha.
e os dois, zaz zaz, fazem os príncipes
que querem e não dão satisfações a ninguém.

o mundo fica no universo, também chamado
cosmos. o cosmos tem mundos, muitos mundos,
um nunca mais acabar de mundos, mas é raro
chocarem-se uns com os outros, embora
andem a velocidades astronómicas. é um
mérito da criação. os outros méritos,
em parte já atrás foram enunciados.
os que não foram é porque são desconhecidos.
pelo menos até à data. mas amanhã quem sabe!
o futuro a nós pertence, embora não
esteja nas nossas mãos, ou por outras palavras:
o futuro está nas nossas mãos.
mas a deus pertence.

o universo, esse está também nas mãos de deus
e é quanto basta saber.

Alberto Pimenta (n. 1937). in Corpos Estranhos (1973). «Alberto Pimenta é um dos mais originais e extravagantes poetas que se revelaram nos anos 70. Além de uma experiência provocativa, Homo Sapiens, 1977, a de se expor no Jardim Zoológico numa jaula do sector dos símios, de um libreto para uma acção poética encenado em 1979, Heterofonia, e de um volume de teoria estética (e antiteoria poética), O Silêncio dos Poetas, 1978, publicou um conjunto de obras que constituem um repto eficaz a todas as convenções de seriedade comunicativa, recorrendo a efeitos de distribuição gráfica, de paronomásia, de paródia, de transgressão caligráfica ou ortográfica, de absurdez narrativa ou retórica, de dessacralização radical, de irritante repetição frásica e de insistência nas mais desagradáveis ou inconfessáveis pequenas experiências ou situações do quotidiano (...). Posteriormente, em outros volumes e peças radiofónicas acentua a sua agressividade iconoclasta» (A. J. Saraiva, Óscar Lopes, in História da Literatura Portuguesa). 

4 comentários:

Marina Tadeu disse...

Não é que irrite. A esta hora, dão sono. Desconheço a obra, claro. Obrigada, Henrique mais uma vez. Se isto é um desabafo anti lista de supermercado no carrinho de compras da poesinhinha empilhadora & afins, tou com ele. Mas claro não li o meio.

MJLF disse...

Só um grande poeta como o pimenta consegue compor partindo da casa para o universo, terminando ironicamente nas mãos de deus. saúde e bjs para toda a tribo :)

Marina Tadeu disse...

Pois, que a grandeza faça de todos os insignes poetas lusos autênticos cantores d’ópera. Agora, para quem é míope, está longe e não usa binóculos, que diferença ela faz? Tentei ler de novo, com respeitoso interesse. Obrigada.

hmbf disse...

é uma escrita inteligente e perspicaz, fortemente irónica (cheia de entrelinhas, apesar de concreta)

o "discurso sobre o filho-da-puta" é, para mim, uma das grandes obras da literatura portuguesa contemporânea