Um dos acontecimentos editoriais deste ano é o
reaparecimento da obra de Katherine Anne Porter (n. 1890 – m. 1980) nas
livrarias portuguesas. A Antígona publicou Cavalo Pálido, Pálido Cavaleiro,
porventura o mais conhecido dos seus contos, enquanto a Relógio D’Água
disponibilizou a colectânea A Torre Inclinada e Outros Contos e resgatou do
esquecimento o único, mas genial, romance da autora (outrora editado pela
Livros do Brasil). A Nave dos Loucos (Relógio D’Água, Abril de 2014) foi
originalmente publicado em 1962, sendo quase de imediato adaptado ao cinema por
Stanley Kramer. Ship of Fools surgiu em 1965, com um elenco onde constavam
actores de monta tais como Vivien Leigh e Lee Marvin. Apesar de ter
consolidado o nome de Porter como uma das grandes prosadoras norte-americanas, os
prémios mais relevantes só chegaram em 1966 (Pulitzer e National Book Award) na
sequência da publicação de The Collected Stories of Katherine Anne Porter
(1965).
Obra de fôlego, ao que consta laborada ao longo de trinta
anos, A Nave dos Loucos conta a história de uma viagem entre Vera Cruz, no
México, e Bremerhaven, na Alemanha, no ano de 1931, ou seja, à entrada da
experiência mais abismal que a Europa conheceu no séc. XX. Porter explica em
nota prévia que o título do livro «é a tradução do alemão Das Narrenshiff,
alegoria moral de Sebastian Brant (1458?-1521)». Eminentemente alegórico, o
romance de Katherine Anne Porter encontra igualmente n’A Parábola dos Cegos de
Pieter Bruegel uma representação imagética fidedigna. Dividida em três partes
(O Embarque, No Alto-Mar, Os Portos), a narrativa respeita um nexo temporal
linear, apesar dos flashbacks que caracterizam certas personagens, mas é
agradavelmente caótica na forma como aborda cada um dos intervenientes. O
narrador vagueia pelo navio, microcosmo de uma humanidade à deriva, como um
fantasma que observa a tripulação e lhe radiografa os anseios, as frustrações,
os medos.
No entanto, o individual não importa tanto aqui quanto o
colectivo. Ou, pelo menos, o que parece ter mais relevância é o papel
desempenhado pelo indivíduo quando colocado entre as forças opressivas do
colectivo. A obra está repleta de alusões a conflitos de classe e hierarquias
sociais, estereótipos morais e egocentrismos culturais, sugerindo certa
desconfiança sobre a vida gregária e suas micro-representações (da
família à igreja, desta à política). Em certo sentido, A Nave dos Loucos
procura responder a uma dúvida que assolou o mundo do pensamento na ressaca da
II Grande Guerra: como foi possível o nazismo? Como foi possível uma fábrica de
morte montada com o consentimento, a cumplicidade e a colaboração de milhões de
pessoas, cidadãos cultos e informados, instruídos e inteligentes? Como foi
possível a barbárie, esta máquina de morte desumana e desumanizadora no centro
nevrálgico da civilização ocidental? Ora, estas dúvidas, não podendo ser respondidas
de uma forma exacta, podem ser aludidas com uma observação atenta do
comportamento humano e das debilidades que tornam cada um de nós uma pobre caricatura
do super-homem nietzscheniano.
Obra claramente individualista, A Nave dos Loucos patenteia
uma paradoxal desconfiança sobre o indivíduo. Não há uma única personagem que
possamos considerar firme e sólida perante o outro, todas vacilam e hesitam quando
ameaçadas pelo exterior, em todas elas a intimidade se revela como que
claustrofóbica e perturbadora, pois todas elas temem ser censuradas pelo outro
tanto quanto não conseguem afirmar-se a si próprias. Gente fraca e indecisa, mas cruel na avaliação dos outros, sobretudo dos desprotegidos. Do médico do navio (alemão)
que se apaixona pela condessa decadente e deportada (espanhola), mas não
consegue abandonar o seu território formal, ainda que este lhe provoque
vários desconfortos, em prol de um amor intenso, ao casal de jovens artistas
norte-americanos indecisos e vacilantes tanto no amor como na arte, passando
pelas almas perdidas da terceira classe, oitocentas e setenta e seis almas olhadas
do convés como se fossem gado, a toda uma tripulação de gente paranóica,
histérica, racista, frustrada, com bêbados e putas à mistura, ninguém escapa ao
diagnóstico patológico traçado pelo narrador.
A doença que contamina de loucura o navio Vera começa,
desde logo, no comandante Thiele, um anti-Ahab sem propósitos heróicos, atacado
de mesquinhez e de inveja, vaidoso, exibicionista, mas, afinal, tão fraco quanto
os demais quando toca a despir a farda alemã e ser ele próprio. O que há de fascinante
nas personagens do romance de Katherine Anne Porter é elas serem personagens de
personagens. A autora consegue algo dificilmente concebível, sugerir-nos o ser
amarfanhado sob a representação social de cada uma das suas criaturas. E a
grande ironia de toda a ostentação de maneiras é saber que esta gente está
prestes a pisar um palco que lhes exigirá, no limite das suas forças, uma de duas coisas:
afirmarem-se enquanto indivíduos ou subjugarem-se à formalidade colectiva, com
todas as consequências nefastas que a história registou. Uma imagem que fica, a
imagem patética do marido que ameaça suicidar-se esperando alguma compaixão da
mulher:
E, no entanto, ali estava ele, sozinho nessa noite fria,
húmida e ventosa do alto-mar, em Setembro, quase a suicidar-se. E ela não mexia
um dedo para o salvar! Mais ainda: escarnecera dele, instigara-o com remoques a
levar avante o seu propósito! Ah, era o fim! Não podia aguentar mais… E não
havia de aguentar! Que loucura a sua, sonhar por um segundo que fosse em deixar
o filho, tão inocente e esperançoso, o seu único herdeiro, na orfandade e,
pensando bem, tão falto de recursos! A mãe, indiferente a tudo, tornaria decerto
a casar, abandonando o filho à mercê de um padrasto como havia abandonado o
marido ao mar cruel. Numa nova onda de terror e indignação, mas também com uma
nova vontade, deu início à longa e trabalhosa operação de voltar ao camarote,
sem nenhum plano definido em mente, mas com uma ideia fixa que parecia
arraigada algures nas suas entranhas, a ideia de que era chegada a hora de
ajustar certas contas, há muito vencidas, com a víbora que havia aquecido no
seu seio durante aqueles calamitosos dez anos.
1 comentário:
Esse filme me impressionou muito. Assisti-o aqui no Brasil sob o título de A Nau dos Insensatos. Fiquei fascinada pelo trabalho do médico alemão (não me recordo o nome do artista, só sei que achei-o lindo!) e de Simone Signoret.
Enviar um comentário