terça-feira, 9 de setembro de 2014

A NAVE DOS LOUCOS


Um dos acontecimentos editoriais deste ano é o reaparecimento da obra de Katherine Anne Porter (n. 1890 – m. 1980) nas livrarias portuguesas. A Antígona publicou Cavalo Pálido, Pálido Cavaleiro, porventura o mais conhecido dos seus contos, enquanto a Relógio D’Água disponibilizou a colectânea A Torre Inclinada e Outros Contos e resgatou do esquecimento o único, mas genial, romance da autora (outrora editado pela Livros do Brasil). A Nave dos Loucos (Relógio D’Água, Abril de 2014) foi originalmente publicado em 1962, sendo quase de imediato adaptado ao cinema por Stanley Kramer. Ship of Fools surgiu em 1965, com um elenco onde constavam actores de monta tais como Vivien Leigh e Lee Marvin. Apesar de ter consolidado o nome de Porter como uma das grandes prosadoras norte-americanas, os prémios mais relevantes só chegaram em 1966 (Pulitzer e National Book Award) na sequência da publicação de The Collected Stories of Katherine Anne Porter (1965).
Obra de fôlego, ao que consta laborada ao longo de trinta anos, A Nave dos Loucos conta a história de uma viagem entre Vera Cruz, no México, e Bremerhaven, na Alemanha, no ano de 1931, ou seja, à entrada da experiência mais abismal que a Europa conheceu no séc. XX. Porter explica em nota prévia que o título do livro «é a tradução do alemão Das Narrenshiff, alegoria moral de Sebastian Brant (1458?-1521)». Eminentemente alegórico, o romance de Katherine Anne Porter encontra igualmente n’A Parábola dos Cegos de Pieter Bruegel uma representação imagética fidedigna. Dividida em três partes (O Embarque, No Alto-Mar, Os Portos), a narrativa respeita um nexo temporal linear, apesar dos flashbacks que caracterizam certas personagens, mas é agradavelmente caótica na forma como aborda cada um dos intervenientes. O narrador vagueia pelo navio, microcosmo de uma humanidade à deriva, como um fantasma que observa a tripulação e lhe radiografa os anseios, as frustrações, os medos.
No entanto, o individual não importa tanto aqui quanto o colectivo. Ou, pelo menos, o que parece ter mais relevância é o papel desempenhado pelo indivíduo quando colocado entre as forças opressivas do colectivo. A obra está repleta de alusões a conflitos de classe e hierarquias sociais, estereótipos morais e egocentrismos culturais, sugerindo certa desconfiança sobre a vida gregária e suas micro-representações (da família à igreja, desta à política). Em certo sentido, A Nave dos Loucos procura responder a uma dúvida que assolou o mundo do pensamento na ressaca da II Grande Guerra: como foi possível o nazismo? Como foi possível uma fábrica de morte montada com o consentimento, a cumplicidade e a colaboração de milhões de pessoas, cidadãos cultos e informados, instruídos e inteligentes? Como foi possível a barbárie, esta máquina de morte desumana e desumanizadora no centro nevrálgico da civilização ocidental? Ora, estas dúvidas, não podendo ser respondidas de uma forma exacta, podem ser aludidas com uma observação atenta do comportamento humano e das debilidades que tornam cada um de nós uma pobre caricatura do super-homem nietzscheniano.
Obra claramente individualista, A Nave dos Loucos patenteia uma paradoxal desconfiança sobre o indivíduo. Não há uma única personagem que possamos considerar firme e sólida perante o outro, todas vacilam e hesitam quando ameaçadas pelo exterior, em todas elas a intimidade se revela como que claustrofóbica e perturbadora, pois todas elas temem ser censuradas pelo outro tanto quanto não conseguem afirmar-se a si próprias. Gente fraca e indecisa, mas cruel na avaliação dos outros, sobretudo dos desprotegidos. Do médico do navio (alemão) que se apaixona pela condessa decadente e deportada (espanhola), mas não consegue abandonar o seu território formal, ainda que este lhe provoque vários desconfortos, em prol de um amor intenso, ao casal de jovens artistas norte-americanos indecisos e vacilantes tanto no amor como na arte, passando pelas almas perdidas da terceira classe, oitocentas e setenta e seis almas olhadas do convés como se fossem gado, a toda uma tripulação de gente paranóica, histérica, racista, frustrada, com bêbados e putas à mistura, ninguém escapa ao diagnóstico patológico traçado pelo narrador.
A doença que contamina de loucura o navio Vera começa, desde logo, no comandante Thiele, um anti-Ahab sem propósitos heróicos, atacado de mesquinhez e de inveja, vaidoso, exibicionista, mas, afinal, tão fraco quanto os demais quando toca a despir a farda alemã e ser ele próprio. O que há de fascinante nas personagens do romance de Katherine Anne Porter é elas serem personagens de personagens. A autora consegue algo dificilmente concebível, sugerir-nos o ser amarfanhado sob a representação social de cada uma das suas criaturas. E a grande ironia de toda a ostentação de maneiras é saber que esta gente está prestes a pisar um palco que lhes exigirá, no limite das suas forças, uma de duas coisas: afirmarem-se enquanto indivíduos ou subjugarem-se à formalidade colectiva, com todas as consequências nefastas que a história registou. Uma imagem que fica, a imagem patética do marido que ameaça suicidar-se esperando alguma compaixão da mulher:

E, no entanto, ali estava ele, sozinho nessa noite fria, húmida e ventosa do alto-mar, em Setembro, quase a suicidar-se. E ela não mexia um dedo para o salvar! Mais ainda: escarnecera dele, instigara-o com remoques a levar avante o seu propósito! Ah, era o fim! Não podia aguentar mais… E não havia de aguentar! Que loucura a sua, sonhar por um segundo que fosse em deixar o filho, tão inocente e esperançoso, o seu único herdeiro, na orfandade e, pensando bem, tão falto de recursos! A mãe, indiferente a tudo, tornaria decerto a casar, abandonando o filho à mercê de um padrasto como havia abandonado o marido ao mar cruel. Numa nova onda de terror e indignação, mas também com uma nova vontade, deu início à longa e trabalhosa operação de voltar ao camarote, sem nenhum plano definido em mente, mas com uma ideia fixa que parecia arraigada algures nas suas entranhas, a ideia de que era chegada a hora de ajustar certas contas, há muito vencidas, com a víbora que havia aquecido no seu seio durante aqueles calamitosos dez anos.

1 comentário:

sonia disse...

Esse filme me impressionou muito. Assisti-o aqui no Brasil sob o título de A Nau dos Insensatos. Fiquei fascinada pelo trabalho do médico alemão (não me recordo o nome do artista, só sei que achei-o lindo!) e de Simone Signoret.