Da histeria demissionária evoluímos para o infantilismo da
desculpabilização. Crato pede desculpas ao mundo, seguindo o exemplo da congénere
com a pasta da Justiça. Educação e Justiça, os dois pilares do regime
democrático, bateram no fundo com fórmulas imbecis e sistemas disfuncionais.
Paula Teixeira da Cruz tinha deixado o aviso: «acabaram-se as impunidades»,
disse há coisa de três anos. Aí está o Citius a comprová-lo. Os títulos das
notícias não deixam margem para dúvidas: «Buraco negro no Citius: faltam
milhares de processos»; «Milagre do Citius: não há processos pendentes em
Portugal». Acabaram-se as impunidades! Não havendo processo, não há crime. Não
havendo crime, não há criminoso. Nada como uma borracha para ter uma sociedade
limpa. Quem gozava com o Simplex pode agora gozar com o Citius,
fosse isto tema de gozo. Mas o assunto pouca graça tem, sobretudo quando
dois ex-ministros aparecem milagrosamente condenados em processos distintos.
Vara com cinco anos de prisão efectiva, Maria de Lurdes Rodrigues com três anos
e seis meses de pena suspensa. Falhas no Citius, por certo. Ou então foram
vítimas das fórmulas engendradas pelos especialistas do Ministério da Educação.
Enfim, não deixa de ter a sua ironia ver Crato, esse génio da pedagogia que os
media consultavam sempre que precisavam de opiniões sobre o “eduquês” e os
desastres no ensino da matemática e mais não sei quantas matérias de inquestionável
interesse científico, não deixa de ter a sua ironia ver o génio das coisas traído
por trapalhada tal. Só que a trapalhada tem custos incalculáveis em vidas
concretas, o que motiva e justifica, já não é mau, o pedido de desculpas do
sábio. Lendo a imprensa de hoje fica-se, porém, muito mais triste
do que a ironia dos factos permitiria supor. O problema, o problema que ninguém
quer admitir e toda a gente parece empenhada em disfarçar, é o mesmo e há muito
nos vem acossando. A esta putativa modernização dos serviços corresponde uma
gloriosa caminhada para a transformação da educação e da justiça em meros negócios,
negócios que, como todos os negócios, sejam eles de banqueiros ou nos bancos
das salas de professores ou nos bancos de réus, têm os seus podres, as suas
tácticas, os seus truques, as suas campanhas e talões de desconto e promoções.
Trava-se neste momento em Portugal uma autêntica guerra que transforma todo o
cidadão em cliente, em número estatístico, em freguês que sustentará o próprio negócio.
A cidadania deu lugar ao clientelismo. Os ministérios são empresas, a política um
trabalho de gestão administrativa com apenas um sentido: o lucro do
administrador. A isto, os especialistas da craveira de um Crato chamam a falência do Estado. Ora, não são óbvias as razões da falência?
1 comentário:
Desculpa lá o lençol, caro Henrique (aconteceu-me…)
Sem discordar sequer de uma vírgula do teu post, preciso distinguir uma pequena nuance, que tem a ver com a diferença de grau entre os mais actuais problemas na Educação, Justiça e quejandos afins.
Antes disso, uma declaração de (des)interesse: na medida do meu possível, evito frequentar tribunais e escolares secretarias, por serem geografias onde se perde uma enormidade de tempo e onde nos pedem demasiado dinheiro por direitos que deveriam ser gratuitos ou próximos disso, e.g., um par de “citius” onde nenhum cidadão deveria ser obrigado a pesar a equação “custos : benefícios = quase nada?”. Adiante.
Os erros na colocação de professores e na migração de processos judiciais, se bem que indícios da mesma realidade (um Estado ineficaz, cada vez mais fora de moda?...), não são exactamente comparáveis. Porquê? Questões bem simples:
- Se as escolas não pudessem funcionar durante 3 semanas, o que diriam telejornais e associações de pais, sindicatos de professores e telejornalistas a prazo?
- Se repartições de finanças não pudessem cobrar impostos durante 3 semanas, o que diriam os televisivos comentadores do reinante “economês”?
- Se polícias e afins, durante 3 semanas, não pudessem vigiar e multar os mais incautos, o que diriam os paranóicos mais securitários?
Por pura maldade, esticando a ideia subjacente:
- Se bares e discotecas “after-hours”, mais a MTV, a SIC RADICAL e o CANAL Q (o quê?!), enfim, se todos esses propagadores da mais imbecil cultura pop não pudessem funcionar durante 3 semanas, o que diriam os seus juvenis frequentadores? (“Tá-se bem? Chill out? Whatever?”)
Convenhamos, existe algo de estranho neste processo. Pergunte-se:
- Por que raio, desde finais de Agosto, os problemas da Justiça nos jornais e tevês têm merecido, quase apenas, notas laterais, quase de rodapé, sempre com justificações apenas técnicas, quando jornais e tevês, esquecendo tantas outras áreas públicas e privadas que simplesmente não funcionam há décadas, têm apontado a morosidade desse aparelho judicial como uma das causas principais do atraso deste país?
- Qual a exacta razão pela qual, ao contrário de tantas outras, algumas “personas”, co-responsáveis por esse atraso, vão merecendo essa estranhíssima massagem chamada “boa imprensa”?
Há 3 semanas sem eles – tribunais-, “a Nação subsiste”. Mais um mistério incluso nesta conclusão (oh tão) juvenil e, passe a ironia, semi-anarca:
- Será que este país precisa de tribunais?
- “Sei lá… tá-se bem... chill out… whatever…”
Enviar um comentário