sexta-feira, 19 de setembro de 2014

LIFE GOES ON


A história do jazz está repleta de figuras extravagantes, lendas e mitos, histórias absurdas e invulgares. Um dos figurões dos primórdios é o trompetista Buddy Bolden, a quem se atribui tal fôlego que quando tocava podia escutar-se a 14 milhas de distância. Infelizmente, não deixou gravações para que nos fosse hoje possível apurar a exactidão dos atributos. Sabemos apenas do desaparecimento prematuro num manicómio. 
New Orleans, então considerada a cidade mais imoral do mundo, possuía imensos prostíbulos, bordéis, lupanares, tugúrios onde os músicos exibiam agilidades várias. O ambiente era de corrupção generalizada. Crime, jogo, prostituição estimulavam o aparecimento de músicos com a função específica de divertirem as massas. Freddie Keppard foi outro desses músicos. Dele se diz que recusou um convite de Victor Label para gravar um disco por recear ser copiado pelos rivais de palco. Morreu em Chicago no ano de 1933. 
A honra do primeiro disco acabou por caber à Original Dixieland Jazz Band, integralmente composta por músicos brancos (e racistas). Num tempo em que todos almejavam a originalidade, proliferaram então bandas com a palavra “original” nas suas designações. Os Original Memphis Five, que não tinham um único membro proveniente de Memphis, viram o seu primeiro disco ser editado pela companhia discográfica como se tratando de uma gravação da Original Dixieland Jazz Band. 
Os equívocos começavam, desde logo, na designação deste novo estilo musical. Havia quem escrevesse Jazz, Jas, Jaz ou Jass, versão preferida dos amantes de trocadilhos que apagavam o “j” dos cartazes para que se lesse apenas “ass”. Portanto, uma música do cu. Não admira que em circuitos mais conservadores a recepção fosse pouco entusiasta. A 16 de Abril de 1919, a propósito da primeira aparição de uma banda de jazz no Reino Unido, comentava-se num jornal: «Chegou a Londres a Original Dixieland Jazz Band, informa um vespertino. Ficamos-lhe gratos pelo aviso». O repórter do Performer especificava: «cheguei à conclusão de que as melhores habilitações para um músico de jazz são não possuir qualquer conhecimento de música». Outros falavam de eventos funestos, do assassinato da música, etc.. 
Para o efeito contribuía também a reputação duvidosa dos intérpretes. La Rocca, da ODJB, afirmava ter tido sorte em sair vivo de Inglaterra depois de haver sido perseguido por um pai ultrajado. O magnífico Sidney Bechet, membro da primeira grande orquestra negra a tocar na Grã-Bretanha, foi preso no país de Sua Majestade sob a acusação de violação. Apesar de tudo, conta Jim Godbolt, «a Grã-Bretanha foi o primeiro país a produzir uma publicação regular que tratava seriamente a música de jazz. Chamava-se Melody Maker…». O seu fundador, Edgar Jackson, antes de se divertir com o mundo da música exibia regularmente um número de variedades com cães amestrados. 
A vida continuou. É hoje reconhecido o contributo inestimável destes pioneiros. Na origem, apenas uma aventura. E a grande ousadia do riso.

A partir de O Mundo do Jazz, de Jim Godbolt, Edições Afrontamento, 1990.

1 comentário:

Marina Tadeu disse...

Foi aqui transmitida em Fevereiro “Dancing on the Edge”, uma série que o realizador-argumentista Stephen Poliakoff fundamentou na experiência de Bechet no Reino Unido. Desconheço se chegou a Portugal. Para mim deu em antecipação imagem e voz a este texto magnífico.