A história do jazz está repleta de figuras extravagantes,
lendas e mitos, histórias absurdas e invulgares. Um dos figurões dos primórdios
é o trompetista Buddy Bolden, a quem se atribui tal fôlego que quando tocava
podia escutar-se a 14 milhas de distância. Infelizmente, não deixou gravações
para que nos fosse hoje possível apurar a exactidão dos atributos. Sabemos
apenas do desaparecimento prematuro num manicómio.
New Orleans, então
considerada a cidade mais imoral do mundo, possuía imensos prostíbulos, bordéis,
lupanares, tugúrios onde os músicos exibiam agilidades várias. O ambiente era
de corrupção generalizada. Crime, jogo, prostituição estimulavam o aparecimento
de músicos com a função específica de divertirem as massas. Freddie Keppard foi
outro desses músicos. Dele se diz que recusou um convite de Victor Label para
gravar um disco por recear ser copiado pelos rivais de palco. Morreu em Chicago
no ano de 1933.
A honra do primeiro disco acabou por caber à Original Dixieland
Jazz Band, integralmente composta por músicos brancos (e racistas). Num tempo em que todos
almejavam a originalidade, proliferaram então bandas com a palavra “original”
nas suas designações. Os Original Memphis Five, que não tinham um único membro
proveniente de Memphis, viram o seu primeiro disco ser editado pela companhia
discográfica como se tratando de uma gravação da Original Dixieland Jazz Band.
Os
equívocos começavam, desde logo, na designação deste novo estilo musical. Havia
quem escrevesse Jazz, Jas, Jaz ou Jass, versão preferida dos amantes de
trocadilhos que apagavam o “j” dos cartazes para que se lesse apenas “ass”. Portanto,
uma música do cu. Não admira que em circuitos mais conservadores a recepção
fosse pouco entusiasta. A 16 de Abril de 1919, a propósito da primeira aparição
de uma banda de jazz no Reino Unido, comentava-se num jornal: «Chegou a Londres
a Original Dixieland Jazz Band, informa um vespertino. Ficamos-lhe gratos pelo
aviso». O repórter do Performer especificava: «cheguei à conclusão de que as
melhores habilitações para um músico de jazz são não possuir qualquer
conhecimento de música». Outros falavam de eventos funestos, do assassinato da
música, etc..
Para o efeito contribuía também a reputação duvidosa dos intérpretes.
La Rocca, da ODJB, afirmava ter tido sorte em sair vivo de Inglaterra depois de
haver sido perseguido por um pai ultrajado. O magnífico Sidney Bechet, membro
da primeira grande orquestra negra a tocar na Grã-Bretanha, foi preso no país
de Sua Majestade sob a acusação de violação. Apesar de tudo, conta Jim Godbolt,
«a Grã-Bretanha foi o primeiro país a produzir uma publicação regular que
tratava seriamente a música de jazz. Chamava-se Melody Maker…». O seu fundador,
Edgar Jackson, antes de se divertir com o mundo da música exibia regularmente
um número de variedades com cães amestrados.
A vida continuou. É hoje
reconhecido o contributo inestimável destes pioneiros. Na origem, apenas uma
aventura. E a grande ousadia do riso.
A partir de O Mundo do Jazz, de Jim Godbolt, Edições Afrontamento, 1990.
1 comentário:
Foi aqui transmitida em Fevereiro “Dancing on the Edge”, uma série que o realizador-argumentista Stephen Poliakoff fundamentou na experiência de Bechet no Reino Unido. Desconheço se chegou a Portugal. Para mim deu em antecipação imagem e voz a este texto magnífico.
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