Em 1996 pude ficar horas a olhar para uma tela rasgada de Lucio
Fontana. Já aqui falei dele uma ou duas vezes. Conheci-o em La Chambre du
Collectionneur, na Fundação Arpad Szenes – Vieira da Silva, e logo senti que,
tivesse dinheiro, investiria em telas rasgadas. Seria um bom investimento,
sobretudo porque os rasgões pontuam um statement bastante crítico sobre a pintura tal como geralmente a concebemos.
O monocromatismo das telas é apenas parcial, na medida em que o
rasgão introduz sobre a placidez da cor a perturbação de um gesto desviante. O
corte não rasga apenas a tela, rasga a placidez da cor, inquieta o espaço,
induz até delirantes associações. Assemelha-se a uma vulva, misteriosa abertura
na hermética formatação de um corpo. Há ali uma ordem e um equilíbrio que foram
descompostos.
É como a instabilidade meteorológica que me impeliu ao reencontro
com Fontana, depois de um dia quente e húmido repleto de chuva e um céu com
explosões de vapor recortadas pelo sol e o rasto de um satélite ou coisa que o
valha a atrair-me para devaneios sucessivos sobre a grande arte que a natureza
tem para nos oferecer. Fosse isto um teste de Rorschach, diria tudo isto
ter visto na porra da tela rasgada de Lucio Fontana.
Mas regresso também por causa do Manifesto Blanco:
A descoberta de novas forças físicas, o domínio da matéria e
do espaço, impuseram gradualmente condições inesperadas à humanidade. A aplicação
dessas descobertas a todos os domínios da nossa vida vai mudar a natureza
humana. A maquilhagem psicológica do homem transforma-se. Estamos a viver numa
era mecânica, na qual o gesso e a pintura sobre tela já não fazem sentido.
Estamos hoje a viver numa era tecnológica, os artistas
insistem no gesso, na tela, noutros materiais, a pintura perdura e perdurará. As
vanguardas têm uma função interrogativa que provoca e precipita novas aventuras
do pensamento, mas falham geralmente na análise histórica, desviam-se das
direcções que a humanidade trilha no sentido da extinção.
O único problema
verdadeiramente universal é o da sobrevivência, como cada um sobrevive ao seu
tempo e no seu tempo. Nada mais dita o trilho da humanidade. E a grande
contradição quando chegamos ao domínio filosófico, que casa bem com o artístico,
é a percepção da astenia caracterizadora do conceito sobrevivência, pois
sabemo-nos desde sempre condenados a não sobreviver.
Há no acto criativo,
sempre houve e haverá, a ilusão de uma perpetuidade desviada do corpo para a
obra. Esta ilusão existe mesmo quando a obra manifesta, no sentido mais radical
do termo, um desprezo pela universalidade e pela intemporalidade, advogando a
efemeridade e finitude de tudo quanto é humano e vivo.
A sobrevivência não é,
ou não deve ser, sob pena de parecer ridícula, uma sobrevivência à morte. A
sobrevivência é sobrevivência à própria vida, questão que abala qualquer ser
humano quando se interroga acerca das dificuldades que sente em manter-se de pé,
vertical, firme. E tudo começa, afinal, numa superfície rasgada.
Entre a origem
do mundo de Courbet e as telas rasgadas de Fontana não há diferença alguma, são
ambas abstracções da sobrevivência.
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