Tenho tantas coisas para dizer
e não quero afogá-las no vinho
amanhã vou-me esquecer
devia ser agora que andam aqui
as gaivotas que cheiram
a mar e a telhas velhas
eu cheiro à noite de ontem
mas devia cheirar a hoje
devia ser agora que eu
devia cheirar a hoje
amanhã se calhar
nem cheiro
nem como
nem ando
devia ser hoje
que andam aqui os bêbados
que cheiram a futuro
toda a gente sabe que o futuro
é dos bêbados
os únicos que aguentam
não cheirarem a hoje
não dizerem hoje
já ninguém é quando quer
é quando pode
e quando se pode já não se é
porque não foi hoje
e é sempre tarde
a noite é tarde
o dia é tarde
eu sou tarde
tu chegaste tarde
Cláudia R. Sampaio (n. 1981), in Os Dias da Corja (2014). Com uma poesia surpreendentemente refractária dos códigos usualmente
configuradores do feminino, Cláudia R. Sampaio encena uma mordacidade capaz de
se voltar tanto contra o mundo que a rodeia como contra si própria. A sua
ironia começa por ser auto-irónica, na medida em que expõe, com perturbadora
violência, as fragilidades de um eu descarrilado. O uso de uma linguagem
coloquial confere ao prosaísmo de alguns poemas, com títulos assaz expressivos
tais como O niilismo é amor ou A lucidez é uma puta, uma postura solta, algo burlesca
e ardilosa, em versos derisórios que admitem o erro e a falha, enfim a derrota,
apenas enquanto parte integrante da luta. Mas esta luta não se engaja numa
estrutura ideológica predefinida, sendo antes discurso desabrido de “gaja dessincronizada”
(perdoe-se-me o trocadilho rasteiro). Os poemas de Os Dias da Corja (do lado
esquerdo, 2014) são como canções rasgadas pelo ruído em rádios mal sintonizadas,
com a devida ressalva que neles podemos encontrar uma irritação que nos agita e por vezes diverte.
3 comentários:
Sou fã da Cláudia! :)
Gostei do Hoje é tarde.
A única grande poeta, juntamente com a Rosalina, neste momento viva.
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