Tombam os dias inúteis:
amanhece, é tarde, anoitece.
Mas a nós que nos importa
ser manhã, meio-dia ou noite?!...
Sonâmbula a vida decorre
— nas ruas, a paz larvar dos grandes cemitérios;
dentro de nós, cada um
apodrece.
Enchem-se de títulos vibrantes os jornais
— mas tudo é tão longe...
Passam homens por homens e não se conhecem:
Boa tarde! Bom dia!
Cada um fechado nas suas fronteiras,
os gestos vazios,
a vida sem sentido
— sonambulismo apenas.
Acorda!
Ainda que seja só para o sobressalto,
que as ilusões do sonho se desfaçam
e as esperanças morram todas nessa hora!
Acorda!
ainda que o caminho a percorrer te espante
e o peso da obra a realizar te esmague!
Ainda que acordar seja
morrer depois aos poucos, em cada momento,
dolorosamente.
Joaquim Namorado (n. 1914 - m. 1986), in Incomodidade (1945). «Joaquim Namorado (...) tende todo à exaltação da energia, do desengano que abre horizontes, ao epigrama satírico; é um dos mais activos organizadores e impulsionadores do neo-realismo» (A. J. Saraiva, Óscar Lopes, in História da Literatura Portuguesa). «Os seus poemas polémicos, deliberadamente sarcásticos e sem cuidados de forma, exerceram uma grande influência, nem sempre exactamente a de consciencialização que o autor pretendia, mas são uma parte muito significativa da época em que surgiram. No entanto, sob o sarcasmo optimista e a pretensa brutalidade da expressão, escondia-se um lírico desesperado, cujo silêncio só momentâneamente tem sido quebrado» (Jorge de Sena, in Líricas Portuguesas).
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