A rotunda da fonte luminosa foi ocupada por um bando de
gaivotas descontraídas. À hora de maior calor, refrescavam-se como crianças em
gestos de folguedo. Contornando a rotunda, as viaturas obedeciam aos nervos dos
condutores. Alguém buzinava por ter sido ultrapassado na fila, uma mãe batia no
filho porque este havia batido no irmão sem que alguém o autorizasse, a
autoridade multava um transportador desprevenido, três raparigas eram
perseguidas pelo olhar depravado de um velho, na paragem do autocarro
protestava-se o atraso crónico dos transportes públicos, duas mulheres
confessavam-se uma à outra, maridos cada vez mais indiferentes, o trabalho, o
cansaço, a idade, um homem sentou-se na esplanada a beber cervejas uma atrás da
outra, o desempregado entregou um currículo, a mercearia abria pela última vez
ao público, liquidação total, no céu os aviões traçavam planos de voo e um
terrorista fazia o reconhecimento do ambiente para um próximo atentado, uma
nuvem desaparecia sem deixar rasto, um homem matava-se sem que alguém desse por
isso, a ambulância do INEM chegou tarde ao chamamento, a mulher morreu vítima
de ataque cardíaco fulminante, um condutor não parou na passadeira, outro deu
passagem à idosa com uma criança pela mão, o ciclista hesitou entre o passeio e
a estrada, o homem de cadeira de rodas não teve por que hesitar, o passeio
estava impedido com várias viaturas estacionadas ao longo da rua… Enquanto tal,
um bando de gaivotas refrescando-se descontraidamente na rotunda da fonte
luminosa levantou voo e foi ver o mar.
4 comentários:
Fantástico...Um texto que rouba o pé. E a respiração.
Obrigado.
Gostei à brava de ler isto.
Grato.
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