As pessoas são, antes de mais, gente, gente vulgar,
mesquinha, insensível. Só em abstracto as pessoas são pessoas, é por educação
que a gente se torna pessoa. Falte a educação, dificilmente evoluiremos de
gente. As gentes pelam-se por mexericos, excitam-se com intrigas, quanto mais
obscenas melhor, as gentes acorrem com mais urgência ao fetichista do que à
vítima. Só quando lhes sobe à consciência o quanto nelas há de pessoa é que
hesitam. Ou não. Um livro como as Cartas a Nora, de James Joyce, não é um livro
de mexericos, é uma recolha de cartas íntimas que permite às pessoas serem
gente sem deixarem de ser pessoas. Este tipo de livros, que não têm um
interesse especial, são um escape para o fetichismo que há em nós. Ao lermos as
cartas, percebemos que um génio como Joyce também era gente, sentimo-nos mais próximos
do génio por também em nós residir o que há de gente em todos. Há frases
meramente cómicas:
Por favor, deixa em casa o espartilho, que eu não gosto
de abraçar marcos do correio.
Há confissões, revelações, declarações de princípio que
tendemos a julgar em absoluto por serem ditas no privado, de um modo bruto, tão
bruto que parece inquestionável:
O meu espírito rejeita o cristianismo e toda a ordem social
presente —
o lar conjugal, as virtudes instituídas, as classes sociais e as doutrinas
religiosas. (…) Eu sou um inimigo da baixeza e do servilismo das pessoas, não
de ti.
Um Joyce marxista ou anarquista não seria novidade para
ninguém, conquanto lhe acrescentemos traços de personalidade pelo próprio confirmados:
Há também em mim um pequeno demónio que se diverte a
destruir a ideia que os outros fazem de mim, demonstrando-lhes que na realidade
sou egoísta, orgulhoso, matreiro e indiferente aos outros. (…) Sou um pobre poeta
impulsivo, pecador, generoso, egoísta, ciumento, insatisfeito e de bom coração,
mas não sou uma pessoa má e traiçoeira.
A breve trecho acrescentaremos ciumento, paranóico,
masoquista, depravado, caprichoso, solitário, orgulhoso. Um Joyce farto de
Dublin —
«cidade do fracasso, do rancor e da infelicidade» —e dos irlandeses em geral:
Detesto a Irlanda e os irlandeses. (…) Por toda a parte, não vejo
senão a imagem do padre adúltero e seus servos, e de mulheres pérfidas e
manhosas.
Mas todas as atenções rapidamente se voltam para o Joyce
apaixonado, cansado de palavras, o Joyce que adora Nora com um «desejo animal e
selvagem» ao qual ela parece corresponder com as mais extravagantes fantasias
sexuais. Palavra «porcas e impúdicas» que encurtam a distância entre os
amantes, separados em carne, unidos pela correspondência. Lê-lo é como assistir
a um filme pornográfico, oferece-nos a crua exaltação do que há de gente no
génio:
8 de Dezembro de 1909
44 Fontenoy Street, Dublin
Nora, minha doce putinha,
Fiz o que me mandaste, sua galdéria, e bati duas pívias enquanto
lia a tua carta. Fico encantado por saber que gostas de ser fodida por trás. Sim,
agora me lembro daquela noite em que te fodi tanto tempo por trás. Foi a foda
mais porca que alguma vez te dei, querida. Passei horas com a piça dentro de
ti, a entrar e a sair de entre o teu rabo espetado. Sentia sob a barriga as
tuas nádegas gordas e suadas, e via o teu rosto afogueado e os teus olhos
revirados. A cada investida da minha piça, a tua língua desavergonhada
projectava-se para fora da boca, e se te dava uma mais vigorosa do que o
habitual, uma série de sujos peidos saía a borbulhar do teu cu. Tinhas o cu
cheio de peidos nessa noite, querida, e eu tirei-tos todos à piçada, uns bem
gordos, outros longos e ventosos, outros ainda que saíam num crepitar rápido e
alegre, além de uma série de peidinhos marotos, culminados por um longo jorro a
escorrer-te por entre as nádegas. É maravilhoso foder uma mulher peidosa quando
cada piçada arranca um lá de dentro. Acho que era capaz de distinguir os peidos
da minha Nora em qualquer parte. Era capaz de os identificar numa sala cheia de
mulheres aos peidos. São peidos de rapariguinha, nada semelhantes aos peidos
húmidos e ventosos que, imagino eu, saem das esposas gordas. É um peido rápido,
seco e malcheiroso como o que uma colegial largará à noite, divertida, no seu
dormitório. Espero que a Nora ainda me solte um sem-fim de peidos na cara, para
que eu lhes possa conhecer também o cheiro.
Dizes que quando eu voltar me vais chupar, e que queres que te
lamba a cona, minha putinha depravada. Espero que uma noite me surpreendas a
dormir de ceroulas, e te aproximes de mim silenciosamente, com um brilho impudico
nos olhos ensonados, que me desapertes os botões um a um, lentamente, que
saques para fora o grosso caralho do teu amante e o metas na tua boca húmida e
o chupes até que fique mais grosso e duro e se venha na tua boca. Um dia
destes, também eu te hei-de surpreender a dormir, levanto-te a camisa e abro
suavemente as tuas cuecas, depois deito-me silenciosamente a teu lado e começo
por lamber-te lentamente em volta do grelo. Tu começas a agitar-te, e então eu
ponho-me a lamber os lábios da cona do meu amor. Tu pões-te a gemer e a
suspirar e a peidares-te, ainda a dormir mas já louca de desejo. Então eu lambo
cada vez mais depressa, como um cão esfaimado, até que a tua cona se converte
numa massa viscosa e o teu corpo se contorce freneticamente.
Boa noite, minha querida e peidosa Nora, meu passarinho fodilhão!
Há uma palavra deliciosa, querida, que tu sublinhaste para eu me vir mais
depressa. Escreve-me mais sobre isso e sobre ti, docemente, e da maneira mais
porca possível.
Jim
James Joyce, in Cartas a Nora, tradução de José Miguel Silva,
Relógio D’Água, Outubro de 2012, pp. 92-93.
1 comentário:
"É maravilhoso foder uma mulher piedosa quando cada piçada arranca um lá de dentro."
"Boa noite, minha querida e piedosa Nora, meu passarinho fodilhão!"
Piedosa? Porque não? Pode ser. Está bem assim.
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