Isto está pela hora da morte
espero permanecer até ao meu próximo aniversário
não peço nem mais.
Depois
com um pouco de insistência
virei a ter certas regalias
um desconto nos comboios suburbanos
(oh, que não me minta a memória
tudo começou com o foguete Porto-Lisboa
roçaram-se nos corredores os peitos
nem sempre da mesma altura
ainda sou daquela idade)
Espero qualquer túnel
que resgate a esperança
de sustos da escuridão
nos faça falar por todos.
De noite,
tudo se apanha em voo, vai-se aos sentidos mais aguçados
aqueles que encontramos nos nossos desenhos de criança
quando não sabíamos do que se tratava:
Se não se trata de perigo
de que temos medo na hora da morte?
Do escuro da morte?
Da morte? Só se define a morte por ela ir ser indefinível
não se define o que estará,
o nosso passo será de gigante
comparado com a timidez da vida
(a nitidez da vida)
Agora directos à morte
sem preparação específica
atlas, conselhos
ou um vislumbre de estratégia que nos faça largar de uma para outra frase
assim, sem transição:
A vida é bela. A morte.
Qual é o perigo?
Eis as duas frases que referia, aliás três.
Sérgio Godinho (n. 1945), in O Sangue Por Um Fio (2009). Celebrizado enquanto escritor de canções, Sérgio Godinho
assinou igualmente livros de ficção, histórias infantis, um volume de poemas.
Ainda que entre as suas canções e a sua poesia possamos encontrar variadíssimos
nexos, nos poemas as palavra libertam-se dos espartilhos métricos e da
coerência narrativa. Voluntariamente elípticos, por isso mesmo algo
enigmáticos, os poemas de Sérgio Godinho propõem uma revisitação do vivido
guiada pela perspectiva da morte. A tensão entre as duas dimensões da
existência impele a uma interrogação crítica, uma espécie de exame a
partir de uma inquietante desfiguração de medos, receios, memórias, ilusões.
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